Decadência tortuosa, digressão e fragilidade da memória em “Leite Derramado” de Chico Buarque

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A decadência em todas as suas formas e níveis sempre fora abordada na arte, principalmente, na literatura, desde o advento do romance moderno.

O romance do século XIX, Flaubert, Machado, Zola, Balzac, os russos, a geração de 1870 de Coimbra, Eça, as narrativas sobre a alta e baixa burguesia, já descreviam as sagas de família e sua decadência econômica, social e moral em vários níveis e os folhetins eram lançados, lidos e depois de uma sucessão de vários volumes eram editados como romances, geralmente longos e divididos em partes.

As impressões em jornal eram, realmente, a grande forma viável de expressar, através de novelas e narrativas de ficção, o comportamento social de um mundo novo aberto à nova dinâmica burguesa, ou mesmo a relação de conflito dos interesses públicos/privados de velhas e novas oligarquias coloniais em países como o Brasil ou mesmo a aristocracia conservadora e cristã de potencias europeias.

O modernismo do início do século XX representado em Proust, Kafka, Virginia Woolf, Beckett e depois em Clarice Lispector, García Márquez e Vargas Llosa fragmentou o discurso narrativo na experimentação da linguagem, mas continuou contando as histórias decadentes de famílias burguesas ou aristocráticas em enredos ainda cheios de peripécias cronológicas tornando o texto mais rebuscado, com monólogos interiores, fluxos de consciência, posições dispersas do narrador, mas agora, claro com exceções como a Recherche de Proust, mais concisos, com relatos mais curtos e com mais ritmo.

Num último corte sincrônico sobre a literatura ocidental, as narrativas contemporâneas da segunda metade do século XX e virando já para o XXI, trazem autores que conseguem conciliar gêneros diferentes, ritmos diferentes, recursos diferentes e ao descreverem um tema tradicional na literatura como as sagas de família, o fazem com complexidade suspensa e concisão quase cirúrgica, como faz Chico Buarque em Leite Derramado.

A narrativa se dá de forma intimista e singela e aos poucos vai se bifurcando em lembranças e memórias fora de lugar, surpreendendo ora pela precisão pontual de tempo e espaço, ora pela entropia e divagação singular do personagem narrador que parece às vezes um tanto confuso, perdido nas lembranças de seu relato secular.

Tudo começa aparentemente num quarto de hospital, aonde um homem aos poucos vai se revelando através de uma suposta conversa com uma de suas enfermeiras. O tom é confessional e de monólogo e passo a passo tenta construir uma relação de vínculo íntimo com a moça que o ouve enquanto lhe dá os remédios e o observa enquanto lhe presta cuidados médicos.

Esse personagem que também é o narrador diz à enfermeira no primeiro parágrafo do livro:

 

            “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família”.

 

O início um tanto melancólico e em monólogo insistente já dá o indício que o personagem protagonista entrará numa espiral lamuriosa de confissões que cedo ou tarde vão denunciar seu estado de decadência física, psíquica e financeira. Baudelaire, certa vez, disse em reconhecer a imagem do herói moderno em crítica que fazia à literatura em voga no seu tempo, a comparando com personagens da Roma clássica e concluindo que o herói moderno era maior que o antigo. Ele diz:

 

            “Não somos hoje maiores do que Brutus?”

 

Será que esse personagem de Leite Derramado, dito pelo próprio narrador como sendo Eulálio D’Assumpção, se encaixa nesse arquétipo do herói moderno descrito por Baudelaire? Ou tem características psicológicas do personagem problemático do romance do século XIX?

A narrativa vai fluindo à medida que o narrador/paciente vai confessando suas memórias, uma a uma, e o panorama de decadência inexorável vai se montando, quando entre outras coisas, entende-se que o personagem já é muito velho e secular, completando cem anos de idade. Depois de comemorar o seu aniversário com o tetraneto e sua namorada Kim, o personagem Eulálio é recolhido na rua por dois policiais que estranham o fato de ter saído sozinho à rua e o levam de volta a seu apartamento onde mora com a filha Maria Eulália.

Surpreende os dois agentes dizendo:

 

            “Cem anos, insisti, e esbanjando saúde, apesar do coração momentaneamente acelerado, e lhes falei do meu amor incestuoso por uma pequena nascida em 1989”.

 

O tom de decadência e de fragilidade de memória faz com que em alguns momentos do texto, o personagem narrador pareça realmente confuso com o que fala. As digressões passam a ser um dos recursos que Chico Buarque usa para salientar a confusão mental de Eulálio que já não lembra mais se determinado evento aconteceu antes ou depois de um outro já citado e os tempos passam a ser alternados de forma um pouco caótica, dentro do total domínio de Chico, de tentar reproduzir as falhas cronológicas das lembranças do paciente internado.

A insuficiência de uma vida plena, como em José Costa, também narrador personagem do livro Budapeste, também de Chico, e os relatos um tanto melancólicos de aventuras e experiências frustradas de uma vida conturbada, fazem com que hajam semelhanças e convergências entre os dois romances. O que parece diferenciá-los, contudo, e torná-los distintos cada um à sua maneira, é o foco de estudo psicológico que o autor faz de seus personagens centrais. Leite Derramado parece analisar a fragilidade da velhice, da finitude, da imprecisão da memória como em O Homem Comum de Philip Roth, ou A Morte de Iván Ilitch de Tolstói, enquanto Budapeste parece canalizar a narrativa para um estudo sobre a crise de identidade e seus desdobramentos sociais, mais ou menos como José Saramago faz no romance O Homem Duplicado.

De qualquer forma o que parece novamente fazer convergir os dois romances, além dos outros citados de Tolstói, Roth e Saramago é a densidade do texto, causando um tom de claustrofobia em algumas passagens, marcados por labirintos textuais em que cada capítulo começa e termina sem uma resolução para a problemática incitada pelas lembranças tortuosas de uma vida frustrada e se aproximando do fim.

José Miguel Wisnik ao analisar Budapeste afirma que entre a relação de identidade das duas cidades presentes no texto, cria-se uma “incógnita” que segundo ele, é o próprio narrador, e que a “incógnita” do narrador é a mulher.

Se a “incógnita” do narrador em Leite Derramado também é a mulher, essa mulher é Matilde. Matilde permeia o romance pelas lembranças de Eulálio D’Assumpção. Tudo parece remeter a ela, a vitalidade juvenil do narrador, suas motivações, desejos, fetiches, ambições, pensamentos e lembranças, tudo tem como cerne a figura de Matilde, a jovem e desejada mulher de Eulálio que se casara com o herói da narrativa no auge de sua vida próspera e de sua projeção social.

Matilde aparece na memória de Eulálio como a “moura encantada” de Gilberto Freire, aquela mulher mestiça que enfeitiçava o imaginário e os desejos sexuais dos homens brancos portugueses quando das invasões mouras na Península Ibérica, e que quando chegavam ao Brasil, se encantavam com as índias nativas de pele morena, semelhantes à lenda da moura mestiça que tomava banho, nua em cachoeiras, lavando seus cabelos escuros e compridos.

Matilde é descrita como um fetiche de Eulálio, mulher jovem, fogosa e desejosa. Em sua memória falha e confusa, o narrador descreve várias vezes e em passagens distintas do romance, a forma e o dia em que a conheceu.

 

            “Não sei se alguma vez lhe contei que já tinha visto Matilde de passagem, na porta da igreja da Candelária. Mas nunca a pude analisar como naquele dia, quando a surpreendi na pausa que antecedia o ofertório. Ela estava no coral que cantava o Réquiem, e o vestido de congregada mariana não lhe caía bem, era como uma roupa ao redor dela, solta da pele”.

 

O desejo pela mulher é realçado numa passagem próxima quando a compara com outras mulheres:

 

            “Debaixo do chuveiro eu agora me olhava quase com medo, imaginando em meu corpo toda a força e a insaciedade do meu pai. Olhando meu corpo, tive a sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele, por todas as fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher”.

 

A jovem mulher desejosa de Eulálio era cheia de vitalidade e desejo pelas boas coisas da vida e estar casada com uma pessoa de prestígio, filho de um senador da República, descendente de uma notável aristocracia portuguesa, em que antepassados andaram com Maria, a Louca, mulher do Imperador Dom João VI e com Dom Pedro II, era experimentar uma vida completamente nova e promissora com viagens a Paris, hospedagem em hotéis suntuosos, boa comida, bebida, pratarias, joias e muito conforto. Parecia uma troca, e a mulher esbanjava sensualidade e vigor dançando maxixes com os amigos do marido e o incitando a desejá-la cada vez mais.

 

Logo engravidou do narrador e deu à luz Maria Eulália, a filha que o acompanharia a vida inteira, tão frustrada quanto ele, já que depois de um tempo de nascida, no auge dos dezessete anos, sua mãe, inexplicavelmente segundo o narrador, desaparece misteriosamente sem deixar vestígios, depois de uma crise violenta de depressão, abandonando marido e filha e sem dar uma explicação. Desconfia-se, novamente segundo as lembranças vacilantes de Eulálio, que a morena possa ter fugido com Dubosc, engenheiro francês, amigo do narrador e que parece ter estreitado relações com a mulher fogosa, depois de ter dançado um maxixe com ela, o que enervou Eulálio, deixando-o com ciúme de Matilde e a rotulando de “vulgar” por não saber se comportar bem nas altas rodas, além da sua falta de cultura e conhecimento para acompanhar o ritmo intelectual das pessoas ligadas à vida da elite do Rio de Janeiro.

Sobre o dilema do desaparecimento de Matilde, Roberto Schwarz em crítica sobre Leite Derramado em sua coluna no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, lança mão de algumas perguntas que o leitor do livro também se fez em algum momento ao longo da narrativa:

 

            “O núcleo romanesco da intriga, o seu elemento de sensação, é o desaparecimento inexplicado de Matilde. Ela se foi com o engenheiro francês? Fugiu aos ciúmes do marido? Caiu na vida? Pegou uma doença e quis morrer fora da vista dos seus? Morreu num acidente de carro, acompanhada de um homem?”

 

Essa resposta, na verdade, não aparece claramente no romance. Entre as lembranças débeis e senis de Eulálio, a especulação por parte dos outros personagens da trama do que poderia ter acontecido, a sombra de uma mãe fantasma para Maria Eulália e os fatos mais concretos narrados ao longo do romance, parece que cabe ao leitor do livro, deduzir, elucubrar, conjecturar e concluir qual foi o destino traçado por Matilde, e que a levou a abandonar uma família recém formada, uma vida que a traria conforto material, a possibilidade real de viver como uma “madame” da alta sociedade carioca e usufruir de todas as prerrogativas burguesas e aristocráticas. Talvez tenha recaído sobre ela a síndrome de Emma Bovary, que nunca se bastou, nunca alcançou a satisfação pessoal ou social, talvez porque como Matilde, buscasse “o absoluto”.

Por fim, o ápice da decadência do herói senil de Chico Buarque fica marcado já no final do livro, no início do capítulo XXIII, quando de forma consciente e aparentemente, lúcida e resignada, Eulálio D’Assumpção sentencia seu destino já quase moribundo e joga a pá de cal sobre qualquer perspectiva para o futuro, concluindo aquele ciclo vicioso de sua vida longeva, onde o primeiro parágrafo do capítulo reflete e completa o parágrafo do primeiro, criando uma antítese como num labirinto estético de espirais que dão voltas em torno de si mesmas e não saem do lugar, numa letargia memorial. Fala para a enfermeira ou fala sozinho como se referisse a ela:

 

            “Quando saísse daqui, eu pretendia pedi-la em casamento, mas ela não me quer mais. Passa ao largo da minha maca, não atende às minhas súplicas, deve estar farta de me ouvir trocar seu nome. Talvez ela não creia que eu ainda volte para casa, ouço rumores de que estou na fila para uma vaga em hospital público”.

 

Divertido e denso, revelador e misterioso, crente e pagão, o romance onde congregam nele, outros romances, inclusive do próprio Chico.

 

 

 

Marcos Duarte

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