Conto de Flannery O’Connor – “Um Homem Bom é Difícil de Encontrar”

 

A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal.“Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui”, disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. “Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida… leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência.”

Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. “À Flórida as crianças já foram”, disse a velha senhora. “Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram.”

A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: “Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?”. Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.

“Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica”, disse June Star sem levantar a cabeça.

“Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?”

“Eu quebrava a cara dele”, John Wesley disse.

“Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa” June Star disse. “Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente.”

“Esta bem, mocinha”, disse a avó. “Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa.”

June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.

Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.

A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.

A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.

Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.

“Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa” John Wesley disse.

“Eu, se eu fosse um menino”, disse a avó, “eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas…”

“O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós” John Wesley disse, “e a Geórgia também é uma porcaria de estado.”

“E isso mesmo”, disse June Star.

“No meu tempo”, a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, “as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!” disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. “Não daria um quadro?” perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.

“Ele estava sem calça”, disse June Star.

“Talvez nem tenha” a avó explicou. “Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas.” E acrescentou: “Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!”.

As crianças trocaram de revista.

A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.

“Olhem lá o cemitério!” disse a avó, apontando. “O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda.”

“E onde esta a fazenda?” John Wesley perguntou.

“E o vento levou…” disse a avó. “Ha, ha.”

As crianças, quando acabaram todas as revistas levadas, abriram e comeram seus lanches. A avó comeu um sanduiche de pasta de amendoim e uma azeitona e não deixou as crianças jogarem pela janela os guardanapos e sacos de papel. Quando não tinham mais o que fazer, brincaram de escolher uma nuvem para os outros adivinharem a forma que ela sugeria. John Wesley escolheu uma nuvem que tinha forma de vaca, June Star falou vaca e ele disse que não, que era carro, e June Star disse que John Wesley estava jogando sujo e logo estavam os dois, por cima da avó, aos tapas. A avo disse que contaria uma historia se eles ficassem quietos. E ela, quando contava uma historia, revirava os olhos e agitava a cabeça e era toda dramática. Contou então que nos seus tempos de moça tinha sido cortejada por um rapaz de Jasper, na Geórgia, chamado Charles Otoline Miles Erlanger Robertson. Um rapaz muito atraente, um cavalheiro, segundo a avó, que todo sábado á tarde, quando a visitava, levava-lhe uma melancia com suas iniciais gravadas: C.O.M.E R. Num desses sábados, como ela disse, Robertson chegou com a melancia e não havia ninguém em casa e ele a deixou na varanda e voltou para Jasper na charrete, mas essa melancia ela nunca viu, porque um negrinho a devorou, como ela disse, quando leu as iniciais C.O.M.E.R. A historinha agradou em cheio a John Wesley, que estourou numa gargalhada e se retorcia de rir, mas June Star não achou graça nenhuma. Disse que jamais se casaria com um homem que se limitasse a levar-lhe uma melancia no sábado. Já a avó disse que para ela teria sido uma beleza se casar com Robertson, porque ele era um homem muito distinto e comprou ações da Coca-Cola logo que foram lançadas e só tinha morrido ha poucos anos, riquíssimo.

Pararam para comer uns sanduiches grelhados num lugar chama- The Tower. Era um misto de salão de festas e posto de gasolina, parte em madeira, parte em estuque, instalado numa clareira nos arredores de Timothy. O dono era um gordo, Red Sammy Butts, e havia placas penduradas ali por toda parte, e por quilômetros na rodovia, dizendo: EXPERIMENTE O AFAMADO GRELHADO DE RED SAMMY. NENHUM SE COMPARA AO DELE! RED SAM, O GORDINHO DA RISADA FELIZ! UM VETERANO! RED SAMMY, O HOMEM CERTO!

Deitado no chão, do lado de fora do The Tower, estava o próprio Red Sammy. Tinha a cabeça enfiada embaixo de um caminhão, enquanto um mico cinzento de seus trinta centímetros, amarrado pela corrente a um pé de saboeiro, fazia papagueatas por perto. Bastou ver as crianças saltarem do carro e correrem na sua direção para o mico pular de volta na arvore e subir ao galho mais alto.

Por dentro, The Tower era um salão comprido e escuro, com um balcão de um lado, mesas do outro, e um espaço para dançar no meio. Sentaram-se a uma mesa de tábuas, ao lado da vitrola automática, e a mulher de Red Sam, alta, queimada, de cabelo e olhos mais claros do que sua pele morena, veio atende-los. A mãe das crianças pôs uma moeda na maquina e escolheu “A valsa do Tennessee”. A avo disse que sempre sentia vontade de dançar com essa musica e perguntou a Bailey se ele dançaria com ela, mas ele apenas a olhou de banda. Não tinha a disposição dela, assim toda animada, e as viagens o deixavam nervoso. Os olhos da avó, olhos castanhos, brilhavam muito. Sentada, ela fazia de conta que dançava, jogando a cabeça, na cadeira, para os dois lados. June Star pediu para tocar uma musica que desse para sapatear e assim a mãe das crianças pôs uma outra moedinha e escolheu algo mais rápido. June Star pulou na pista e, como era de seu habito, sapateou.

“Que gracinha!” disse a mulher de Red Sam, debruçada no balcão. “Você quer vir morar comigo? Quer ser a minha filhinha?”

“Nem por sombra”, June Star disse, “nem por um milhão de dólares eu moraria num lugar tão caído assim!” e voltou correndo para a mesa.

“Mas não e mesmo uma gracinha?”, repetia a mulher, esticando polidamente os beiços.

A avo ralhou: “Não tem vergonha não?”.

Red Sam entrou e disse a esposa para correr com o pedido dos fregueses, em vez de ficar ali no balcão fazendo hora. Sua calça caqui vinha arriada até quase as coxas, sob o peso da barriga que despencava como um saco de farinha trepidando por baixo da camisa. Aproximou-se, sentou-se perto e deixou escapar algo impreciso, combinação de suspiro e cantoria. “Não dá pra levar” dizia. “Assim não dá pra levar!” e com um lenço acinzentado enxugava o suor do rosto vermelho. “Hoje em dia não se pode confiar em ninguém”, disse depois. “Não é verdade?”

“As pessoas certamente não são mais tão gentis como já foram”, disse a avó.

“Semana passada” disse Red Sammy, “vieram aqui dois camaradas, num Chrysler. Um carro velho, muito rodado, mas bom, e os rapazes me pareciam gente direita. Disseram que trabalhavam no moinho, e não é que eu vendi gasolina fiado para eles? Por que fui fazer isso?”

“Porque o senhor é um homem bom”, a avó disse.

“É, dona, acho que sim”, disse Red Sam, como se ficasse, ele mesmo, espantado com a resposta.

Sua mulher chegou com os pedidos, carregando os cinco pratos, sem bandeja, de uma só vez: dois em cada mão e mais um equilibrado no braço. “Não há alma que seja neste mundo de Deus”, disse ela, “em quem se possa confiar. E eu não excluo ninguém, ninguém mesmo”, repetiu, olhando para Red Sammy.

“Vocês leram alguma coisa sobre aquele bandido, o Desajustado, que fugiu da cadeia?” a avó perguntou.

“Eu não ficaria nem um pouco surpresa se agora mesmo ele atacasse esse lugar aqui”, disse a mulher. “Se ele souber que nós estamos aqui, e se me aparecer pela frente, não ficarei nada surpresa. Se souber que na caixa registradora tem algum dinheiro, não ficarei nada surpresa se ele…”

“Chega!” Red Sam disse. “Traz logo as Cocas dos fregueses”, e a mulher lá se foi a completar o pedido.

“Um homem bom e difícil de encontrar”, disse Red Sammy. “Tudo está ficando um horror. Lembro do tempo em que se podia sair tranquilamente de casa e deixar a porta aberta. Agora não mais.”

Ele e a avó se distraíram conversando sobre tempos melhores. A culpada era a Europa, na opinião da velha senhora, se as coisas andavam assim agora. Pela atitude da Europa, segundo ela, até se poderia pensar que os americanos eram feitos de dinheiro, e Red Sam disse que nem adiantava falar daquilo, que ela estava coberta de razão. As crianças correram para fora, para a claridade do sol, e foram ver o macaquinho no saboeiro rendado. O mico estava entretido, catando pulgas que comia, como guloseimas, com um demorado estalar de dentes.

Depois, pela tarde quente, a família prosseguiu em viagem. A avó dava umas cochiladas e de quando em quando era despertada pelos seus próprios roncos. Nos arredores de Toombsboro, ao acordar de vez, lembrou-se de uma velha fazenda que ela havia visitado por ali, na região, quando moça. Disse que a casa tinha seis colunas brancas na frente, uma fileira de carvalhos conduzindo à entrada e dois pequenos caramanchões de madeira, bem na frente, um de cada lado, onde as moças sentavam-se com os pretendentes, depois de algumas voltas no jardim.

A estrada que era preciso pegar para chegar até lá veio-lhe com precisão à memoria. Ela sabia que Bailey não concordaria em perder tempo só para ir ver uma casa velha, mas quanto mais falava nisso, mais ela queria revê-la, querendo saber se os caramanchões geminados ainda estavam de pé “Havia nessa casa uma passagem secreta”, disse pois com astucia, sem contar uma verdade, mas desejando que assim fosse, “e diziam que a prataria da família foi toda escondida lá, quando Sherman passou por aqui, e nunca pode ser encontrada…”

“Oba, então vamos lá!”, John Wesley disse. “Vamos descobrir essa prata! E só abrir o madeirame, e só ir tirando as tabuas, que a gente acha. Quem mora lá? Onde e que se pega o caminho? Ei, pai, não dá para dobrar por ali?”

“Nunca vimos uma casa com passagem secreta”, berrou June Star. “Vamos ver a casa com passagem secreta! Oba! Papai, temos de ir ver a casa com passagem secreta!”

“Eu sei que não fica longe daqui”, disse a avó. “Nem bem uns vinte minutos.”

Bailey olhava reto em frente, com o queixo tão rígido quanto uma ferradura. “Não”, ele disse.

A gritaria das crianças, querendo ver a casa com passagem secreta, não fez senão aumentar. John Wesley chutava as costas do banco dianteiro, e June Star se pendurou no ombro da mãe, em cujo ouvido choramingou desesperada que era sempre assim mesmo, que nem nas ferias eles se divertiam, que eles nunca podiam fazer o que eles mesmos queriam. O bebê já estava berrando. E os chutes de John Wesley no assento se tornavam tão fortes que o pai já sentia os golpes nos rins.

“Tá legal!” o pai gritou, e parou o carro no acostamento. “Mas vocês querem calar a boca? Querem calar a boca um minuto? Se não se calarem, não vamos a lugar nenhum.”

“Mas seria muito instrutivo para eles” murmurou a avó.

“Está bem”, Bailey disse, “mas anotem: e a única vez em que nos vamos parar por uma coisa dessas. É a primeira e ultima vez.”

“A estrada de terra que você tem de pegar já ficou lá para trás, a uns dois quilômetros”, a avó orientou. “Eu a notei quando passamos.”

“Estrada de terra…”, resmungou Bailey.

Quando já iam, depois de terem feito um retorno, em direção a al estrada, a avó rememorou outros detalhes da casa, como o belo vitral sobre a entrada e o candelabro do salão. John Wesley disse que a passagem secreta provavelmente ficava na lareira.

“Não se pode entrar na casa”, Bailey disse. “Nem sabemos quem mora lá.”

“Posso ir por trás, enquanto vocês conversam com as pessoas na frente, e entrar por uma janela”, John Wesley sugeriu.

“Não”, disse a mãe, “vamos ficar todos no carro.”

O carro, sacolejando muito, entrou pela estradinha de barro num turbilhão de poeira cor-de-rosa. A avó se lembrou dos tempos em que não havia estradas asfaltadas e se levava um dia inteiro para andar cinquenta quilômetros. A estradinha era acidentada e íngreme, com inesperadas crateras de atoleiros e curvas muito fechadas em perigosos barrancos. Ora eles estavam bem no alto de um morro, vendo as copas azuladas das arvores que se estendiam lá embaixo, por quilômetros em torno, ora, logo a seguir, já estavam numa depressão de terra vermelha, com arvores empoeiradas por cima.

“É melhor esse lugar aparecer logo”, Bailey disse, “porque senão eu vou voltar.”

Dava a impressão de que ninguém, há meses, passava naquela estrada.

“Não esta muito longe”, disse a avó, e justamente quando o disse ela teve um pensamento horroroso. Um pensamento tão embaraçoso que seu rosto corou, seus olhos se dilataram e os pés se mexeram muito no chão, atingindo e deslocando a maletinha no canto. No mesmo instante em que a valise se moveu, a folha de jornal que ela usava como tampa da cesta que estava embaixo se levantou com um miado e voou no ombro de Bailey.

As crianças foram jogadas no chão. A mãe, agarrada ao bebê, foi jogada porta afora, na estrada. A velha senhora jogada para o banco da frente. O carro deu uma capotada e voltou à posição normal, mas fora da estrada, e numa vala. Bailey permanecia no lugar do motorista com o gato – listrado de cinza, cara branca achatada e focinho cor de laranja – agarrado como lagarta em seu pescoço.

As crianças, assim que conseguiram mexer braços e pernas, saíram se espremendo do carro, e gritavam: “Tivemos um acidente!”. Ja a avó se encolheu sob o painel, com a esperança de estar ferida para que a ira de Bailey não se abatesse implacável sobre ela. O pensamento horroroso que havia tido, pouco antes do acidente, foi que a casa da qual ela se lembrava tão bem não ficava na Geórgia, mas sim no Tennessee.

Bailey tirou o gato do pescoço, com ambas as mãos, e o arremessou contra o caule de um pinheiro, pela janela. Depois, saindo do carro, foi procurar a mãe das crianças. Essa, que estava ao lado da valeta estripada, e ali sentada segurava o bebé aos berros, tinha ela mesma apenas uma fratura no ombro e um corte feio no rosto. “Tivemos um acidente!” gritavam as crianças numa alegria frenética.

“Mas não morreu ninguém”, disse, desapontada, June Star, quando a avó desceu mancando do carro com o chapéu ainda preso na cabeça, malgrado a aba desabada na frente, que ela tentava recolocar numa posição elegante, e o buque de violetas caído ao lado. Sentaram-se todos na valeta, menos as crianças, todos tremendo muito, para se refazerem do susto.

“Talvez venha um carro por aí, disse a mãe das crianças com a voz embargada.

“Acho que algum órgão meu foi afetado”, disse a avó, apalpando- se de um lado do corpo, mas ninguém ligou para ela. Os dentes de Bailey batiam sem parar. Vestido numa camisa esporte amarela, na qual brilhavam, estampadas, umas araras-azuis, ele estava com o rosto da mesma cor da camisa. A avó achou melhor não dizer que a tal da casa era no Tennessee.

A estrada se encontrava cerca de três metros acima, e eles podiam ver apenas, do outro lado, o topo das arvores. Por trás da vala na qual estavam sentados se estendia a mata cerrada, escura e alta. Em poucos minutos avistaram um carro, não muito longe, no cocuruto de um morro, que vinha bem devagar, como se seus ocupantes os observas- sem. A avó, para lhes chamar a atenção, levantou-se em espalhafatosos acenos, agitando os dois braços. O carro, que continuava a se aproximar lentamente, desapareceu numa curva e ressurgiu adiante ainda mais devagar, já no cume do morro por que eles tinham passado. Era um grande automóvel preto e velho, em péssimo estado, que mais parecia um carro fúnebre. Levava três homens dentro.

Parou bem por cima deles e, por alguns minutos, o motorista ficou olhando para baixo, lá para onde eles estavam, de um modo fixo, porém sem expressão, e não disse nada. Depois, virando-se de cabeça, sussurrou algo aos outros dois, que desceram. Um, o gordo, de calça preta, que usava uma camiseta vermelha adornada no peito por um garanhão prateado, passou por eles e foi plantar-se à direita, do outro lado, de onde concentradamente os olhava, com uma espécie de riso frouxo na boca aberta pelo meio. O outro, de calça caqui e paletó listrado de azul, com um chapéu cinza tão enterrado na testa que lhe ocultava a maior parte do rosto, lentamente se aproximou pela esquerda. Nenhum dos dois falava nada.

O motorista saltou, mas continuou ao lado do carro, de pé, olhando para eles lá embaixo. Era mais velho do que os outros dois homens. Seu cabelo já estava meio grisalho, e os óculos de aros prateados davam-lhe um ar estudioso. Tinha o rosto enrugado e o peito nu, sem camisa nem camiseta. Sua calça blue jeans estava muito apertada e ele empunhava um revolver, tendo na outra mão seu chapeu preto. Os dois rapazes também estavam armados.

“Sofremos um acidente”, as crianças gritavam.

A avó teve a nítida impressão de que já conhecia aquele homem de óculos. Seu rosto lhe era bem familiar, como se o tivesse conhecido a vida toda, e ela no entanto não conseguia se lembrar quem era. Ele se afastou do carro e começou a descer pelo barranco, firmando os pés com atenção, para não escorregar. Usava sapatos de duas cores, marrom e branco, sem meias, e tinha os tornozelos muito vermelhos e finos. “Boa tarde”, ele disse. “Tiveram um probleminha, ne?”

“Capotamos duas vezes!”, disse a avó.

“Uma” ele corrigiu. “Nos vimos quando aconteceu. Ligue lá o carro deles, Hiram, pra ver se pega”, disse calmamente para o rapaz de chapéu cinza.

“Pra que essa arma?”, perguntou John Wesley. “Vai fazer o que com essa arma, hein?”

“Minha senhora”, disse o homem para a mãe das crianças, “mande essas crianças sentarem-se ai ao seu lado, sim? Crianças me põem nervoso. Quero todos vocês sentados juntos aí, aí mesmo onde estão.”

“Por que é que você está dando ordens pra gente?” June Star per­guntou.

A mata se abria, por trás deles, como uma boca escura. “Venham pra cá”, disse a mãe.

“Olha aqui”, disse Bailey bruscamente, “nós estamos numa enrasca- da! Estamos nu…”

A avó deu um grito. Ficou em pé, encarou o homem e disse: “O senhor e o Desajustado! Eu logo vi!”.

“É, dona, sou sim”, disse o homem, com um ligeiro sorriso, como que satisfeito de sua fama, apesar dos pesares, “mas seria muito melhor para todos se a senhora não tivesse me reconhecido.”

Bailey se virou abruptamente e disse para a sua mãe qualquer coisa que deixou até mesmo as crianças chocadas. A velha senhora começou a chorar, e o Desajustado corou.

“Minha senhora”, ele disse, “não fique triste. As vezes um homem diz coisas sem querer. A intenção dele, penso eu, não era falar assim com a senhora.”

“O senhor não atiraria em mulher, não é?” disse a avó, tirando do punho do vestido um lencinho limpo para enxugar os olhos

O Desajustado enfiou o bico de seu sapato na terra e fez um buraquinho que depois tampou. “Eu detestaria ter de fazer isso” disse.

“Escute aqui”, disse a avó quase gritando, “eu sei que o senhor é um homem bom. Não aparenta nem um pouco ser pessoa comum. Sei que deve ser de boa familial”

“Ah, isso sim”, disse ele, “da melhor do mundo.” Deixava a mostra, quando ria, seus dentes brancos e fortes. “Deus nunca fez mulher mais perfeita do que a minha mãe, e o coração do meu pai era ouro puro”, ele disse. O rapaz de camiseta vermelha deu a volta e, com sua arma apoiada na cintura, ficou em pé por trás deles. O Desajustado se agachou. “Olho nessas crianças, Bobby Lee”, disse ele. “Você sabe que elas me deixam nervoso.” Olhava para o grupo dos seis amontoados ali na sua frente e parecia confuso, como se não achasse o que dizer. “Nem uma nuvem no céu, não é?” observou, olhando para as alturas. “Não se vê o sol, mas também não se vê nuvem.”

“Pois é, está um dia lindo!” disse a avó. “Mas ouça” acrescentou, “o senhor não deveria se chamar de Desajustado, porque eu sei que é um homem de bom coração. Basta olhar a sua pessoa, que eu logo vejo.”

“Silêncio”, gritou Bailey. “Boca calada todo mundo! Deixem comigo que eu resolvo a parada.” Ele estava a postos, na posição de um corredor na largada, mas não se moveu.

“Obrigado por suas boas palavras, minha senhora” disse o Desajustado, traçando com o cabo da arma uma rodinha no chão.

“Levaria uma meia hora para ajeitar esse carro”, gritou Hiram, olhando por cima do capô aberto.

‘Tudo bem, mas primeiro você e o Bobby Lee levem o cara e o garotinho para dar uma andada”, disse o Desajustado, apontando Bailey e John Wesley. “Os rapazes querem te perguntar uma coisa”, disse ele para Bailey. “Pode dar uma chegadinha ali na mata com eles?”

“Escute aqui”, começou Bailey, “nos estamos numa enrascada terrível! Será que ninguém percebe?” mas sua voz sumiu, e ele permaneceu completamente parado, com os olhos de um azul tão intenso quanto as araras da camisa que usava.

A avó se esticou para ajeitar a beirada do chapéu, como se tivesse de ir para a mata também, mas o chapéu acabou caindo na sua mão. Ela o olhou por algum tempo e depois o deixou cair no chão. Hiram puxou Bailey pelo braço, como se estivesse ajudando a um velho. John Wesley se agarrou na mão do pai, e Bobby Lee os seguiu. Foram lá para a mata, e quando estavam chegando a orla escura Bailey se virou e, apoiado no caule nu e acinzentado de um tronco de pinheiro, gritou: “Eu volto logo, mamãe, me espere aí!”.

“Volte já! Agora mesmo!”, gritou a mãe, mas todos tinham desaparecido na mata.

“Bailey, meu filho!” chamou a avó numa voz trágica, mas deu-se conta de que tinha pela frente, agachado no chão, o Desajustado, para o qual alias estava olhando. “Sei que o senhor e um homem bom”, disse, desesperada. “Não é uma pessoa qualquer!”

“Não, dona, não sou bom não”, o Desajustado disse um segundo depois, como se houvesse refletido sobre o que ela tinha dito, “mas também não sou o pior do mundo. Meu pai dizia que eu era de outra raça, diferente dos meus irmãos e irmãs. Dizia que há pessoas capazes de passar a vida toda sem perguntar por quê, mas que outras tem de saber o porquê das coisas, e que eu era desse tipo e ia me meter em tudo.” Pôs o chapéu preto, olhou bruscamente para cima e logo desviou o olhar lá para a mata, como se estivesse novamente sem jeito. “Desculpem eu estar sem camisa assim diante das senhoras”, disse, dobrando ligeiramente os ombros. “Nos enterramos nossas roupas depois da fuga, e temos nos safado com essas até achar coisa melhor. Essas nós pegamos com um pessoal que encontramos”, explicou.

“Mas então está tudo bem” disse a avó. “Bailey deve ter uma camisa extra na mala.”

“Ah, eu vou dar uma olhada”, disse o Desajustado.

“Para onde estão levando eles?”, berrou a mãe das crianças.

“O meu velho era um colosso. Ninguém passava a perna nele. Nunca se meteu numa encrenca, sabia como lidar com autoridades.”

“O senhor também, se quisesse tentar, poderia ser honesto”, disse a avó. “Já pensou que maravilha seria fixar-se numa vida tranquila, sem ter de pensar se há alguém a persegui-lo o tempo todo?”

O Desajustado pareceu refletir. Continuava rabiscando no chão, com o cabo da arma, e disse: “Tem sempre alguém atrás da gente”.

A avó pode notar que os ombros dele eram estreitos demais, logo abaixo do chapéu, porque, estando em pé, ela o via de cima. “Costuma rezar?”, perguntou.

Ele meneou a cabeça. Ela só viu o chapéu preto balançando em seus ombros. E ele disse: “Não”.

A um tiro de pistola na mata seguiu-se logo mais um. Depois, silencio. A cabeça da avo rodopiou. Ela ouviu o vento passando pelo alto das arvores como uma tomada de ar longa e satisfatória. “Bailey, meu filho!” gritou.

“Por uns tempos, fui cantor gospel”, disse o Desajustado. “Já fiz um pouco de tudo. Fiz meu serviço militar, em terra e no mar, no país e lá fora, já me casei duas vezes, já fui agente funerário, já fui ferroviário e já lavrei a mãe terra, estive em um tornado, certa vez vi um homem queimado vivo…” e olhou para a mãe das crianças e a garota, que estavam sentadas bem juntinhas, com o rosto pálido e os olhares vidrados. “Vi até uma mulher ser chicoteada”, acrescentou.

“Reze”, interveio a avó. “Reze…”

“Não me lembro de ter sido um mau menino”, o Desajustado disse, numa voz como que em devaneio, “mas o fato e que lá pelas tantas fiz alguma coisa de errado e fui para a cadeia. Enterrado vivo, na penitenciária” e olhou para cima, prendendo-lhe a atenção com um olhar persistente.

“Era então que devia ter começado a rezar”, ela disse. “O que foi que fez para ser mandado para a penitenciária dessa primeira vez?”

“Do lado direito uma parede” disse o Desajustado, “do lado esquerdo outra. Se eu me virasse para cima, via o teto; para baixo, o chão. Esqueci o que eu fiz, minha senhora. Sentava lá e ficava tentando lembrar o que eu tinha feito e até hoje não lembro. De vez em quando parecia que ia vir, que eu ia me lembrar, mas não vinha.”

“Talvez o tenham prendido por engano”, disse vagamente a velha senhora.

“Não”, ele disse. “Não houve erro. Sabiam tudo a meu respeito.”

“Teria roubado alguma coisa, por acaso?” ela disse.

O Desajustado, zombando um pouco, riu. “Ninguém tinha nada que eu quisesse” disse. “Um medico lá da penitenciaria, um medico de cabeça, sabe, cismou que eu mesmo tinha matado meu pai. Invenção dele, é claro. Meu pai morreu na epidemia de gripe de 1919, e eu nunca tive nada com isso. Foi enterrado no cemitério da igreja batista de Mount Hopewell. Se quiser, pode ir lá ver.”

“Jesus lhe ajudaria” disse a velha senhora, “se o senhor rezasse.”

“Isso é verdade”, disse o Desajustado.

“Mas então por que não reza?” perguntou ela, trêmula, num repentino deleite.

“Não quero ajuda”, disse ele. “Tenho me dado bem sozinho.”

Bobby Lee e Hiram voltaram da mata a passos lentos. O primeiro arrastando uma camisa amarela com araras-azuis muito brilhantes.

“Jogue essa camisa pra mim”, disse o Desajustado. E a camisa veio voando, pousou em seu ombro e ele a vestiu. A avó não conseguia saber o que é que a camisa lhe trazia a lembrança. “Não, dona” disse o Desajustado, enquanto a abotoava, “eu descobri que o crime não importa. Você pode fazer isso ou aquilo, matar um homem ou roubar um pneu do carro dele, porque mais cedo ou mais tarde você se esquecerá do que fez e será punido justamente por isso.”

A mãe das crianças começou a dar uns gemidos, como se não pudesse respirar muito bem. “Dona”, ele pediu, “pode dar uma chegada com Bobby Lee e Hiram ate ali, com a garotinha, para juntar-se ao seu marido?”

“Sim, obrigada” disse, enfraquecida, a mulher. Seu braço esquerdo pendia bambo, e com o outro ela amparava o bebe, que agora estava dormindo. “Ajude a moça, Hiram”, disse o Desajustado, quando ela já se esforçava para sair da valeta, “enquanto o Bobby Lee pega a garota pela mão.”

“Não quero que ele me pegue pela mão”, disse June Star. “Parece um porco.”

O gordo corou e riu e a pegou pelo braço e foi levando para a mata atrás de Hiram e da mãe.

Sozinha com o Desajustado, a avó constatou ter perdido a voz. Não havia uma só nuvem, nem sol, no céu. Nada, em torno dela, a não ser a mata. Ela queria dizer que ele devia rezar. Abriu e fechou diversas vezes a boca, mas a frase não saía. Finalmente deu consigo dizendo: “Jesus, Jesus”, querendo dizer Jesus vai lhe ajudar, embora mais parecesse estar xingando, pelo modo como falou.

“É, dona”, disse o Desajustado, como se concordasse. “Jesus desequilibrou as coisas. O mesmo caso, o dele e o meu, só que ele não praticou nenhum crime, e o meu eles puderam provar, porque tinham tudo anotado na minha ficha. É claro”, disse ele, “que nunca me mostraram a ficha. Por isso agora assino tudo. Ha muito que eu digo, o negócio é caprichar na assinatura, assinar tudo que fizer e guardar cópia. Você assim poderá saber o que fez, podendo comparar o crime ao castigo, para ver se correspondem, e por fim terá alguma coisa para provar, se não for tratado direito. Se eu me chamo Desajustado”, disse ele, “e porque não faço esse ajuste, não consigo encaixar as coisas para que tudo que eu fiz de errado corresponda a tudo que sofri de castigo.”

Veio da mata um grito lancinante, logo seguido por um tiro de pistola. “A senhora acha justo que um receba punição rigorosa e outro nem sequer seja punido?”

“Jesus!”, gritou a velha. “O senhor tem sangue bom. Tenho certeza de que não atiraria numa mulher. Sei que vem de boa família… Jesus, reze! Numa senhora o senhor não deve atirar. Eu lhe dou todo o dinheiro que eu tenho!”

“Minha senhora”, disse o Desajustado, olhando bem além dela, para a mata, “cadáver não da gorjeta para quem faz o serviço.”

Houve mais dois tiros de pistola e a avó ergueu a cabeça, como uma perua sedenta pedindo agua para se refrescar, e gritou: “Bailey, meu filho! Bailey, meu filho!” como se o seu coração fosse explodir.

“Jesus foi o único a ressuscitar os mortos” prosseguiu o Desajustado, “e ele não devia ter feito isso. Desequilibrou tudo. Se ele fazia o que dizia, não temos outra coisa a fazer a não ser renunciar a tudo e segui-lo. Mas, se não fazia, então o que nos cabe e desfrutar dos poucos minutos que nos restam da melhor maneira possível – matando alguém ou queimando a casa de alguém ou lhe fazendo alguma outra maldade. Sem maldade não ha prazer”, disse ele, e sua voz era quase um rosnado.

“Vai ver que ele não ressuscitou os mortos”, murmurou a velha senhora, já sem saber o que dizia e se sentindo tão tonta que arriou na vala, a medida que suas pernas foram se retorcendo.

“Se fez ou não fez, não sei, porque eu não estava lá”, disse o Desa­justado. “E bem que eu gostaria de ter estado”, acrescentou, dando um soco no chão. “Não é justo ser assim, porque, se eu tivesse estado lá, eu saberia. Sabe de uma coisa, madame”, disse em voz alta: “Se eu tivesse estado lá, eu saberia, e não seria como sou agora”. Sua voz parecia a ponto de rachar, e a cabeça da avó clareou por um instante. Ela viu o rosto do homem contorcendo-se próximo ao dela, como se ele fosse chorar, e balbuciou: “Mas você é uma das minhas crianças, um dos meus filhinhos!” esticando o braço para toca-lo no ombro. O Desajustado deu um pulo para trás, como se uma cobra o picasse, e atirou três vezes nela, todas no peito. Depois botou a arma no chão, tirou os óculos e começou a limpá-Ios.

Hiram e Bobby Lee voltaram da mata e pararam na beirada da vala, de onde olhavam para a avó lá embaixo, meio sentada, meio deitada numa poça de sangue, com as pernas cruzadas sob o corpo, como pernas de criança, e o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens.

Os olhos do Desajustado, sem os óculos, eram lívidos, orlados de vermelho e indefesos. “Levem ela daqui e joguem lá onde jogaram os outros” disse ele, apanhando o gato, que se esfregava em sua perna.

“Ela falava demais, né?” disse em voz cantante Bobby Lee, ao escorregar vala adentro.

“Seria até boa mulher”, o Desajustado disse, “se a cada instante de sua vida houvesse alguém nas cercanias para lhe dar um tiro.”

“Teria sido gozado!” disse Bobby Lee.

“Cala essa boca, Bobby Lee!”, disse o Desajustado. “É, na vida não há prazer verdadeiro.”

 

– Flannery O’Connor

“O Imitador de Vozes” – Conto de Thomas Bernhard!

Convidado de ontem à noite da Sociedade Cirúrgica, O imitador de vozes, depois de se apresentar no Palais Pallavicini a convite da própria Sociedade Cirúrgica, já havia concordado em se juntar a nós na Kahlenberg para, também ali, na colina onde mantemos uma casa sempre aberta a todas as artes, apresentar seu número, naturalmente não sem o pagamento de cachê. Entusiasmados com o espetáculo a que tínhamos assistido no Palais Pallavicini, pedimos ao imitador de vozes, natural de Oxford, na Inglaterra, mas que frequentou escola em Landshut e exerceu de início a profissão de armeiro em Berchtesgaden, que, na Kahlenberg, não se repetisse, mas apresentasse algo inteiramente diverso do mostrado na Sociedade Cirúrgica, ou seja, que imitasse na Kahlenberg vozes inteiramente diferentes daquelas imitadas no Palais Pallavicini, o que ele prometeu fazer. E de fato o imitador de vozes imitou na Kahlenberg vozes inteiramente diferentes daquelas apresentadas na Sociedade Cirúrgica, algumas mais, outras menos famosas. Pudemos inclusive fazer pedidos, aos quais o imitador de vozes atendeu com a maior solicitude. Quando, porém, no final, sugerimos que imitasse sua própria voz, ele disse que aquilo não sabia fazer.

– Thomas Bernhard

Conto – “A Liga Humana”

Márcia Coelho estava decidida naquele dia.

Vira o filme de Denis Villeneuve uma semana antes. Incêndios era a lembrança do cristianismo violento num Líbano dos anos setenta, em meio à guerra civil, contextualizado pelo diretor canadense. Havia violência naquela terra seca quase não determinada num dos corações do oriente médio.

Claro, a lembrança não era só sobre aquele cristianismo e sobre violência naquela terra de fenícios. A vida daquela mulher, persona instável e perturbada daquele filme tenso, tinha sido uma desgraça violenta quase total. “Quem dera se fosse estéril” – pensou Márcia. “O que teria feito no lugar daquela infeliz?” “Nem consigo pensar se fosse eu, o que teria feito para não viver tanta indignação e aquela miséria.”

“A mulher que cantava numa cela de prisão imunda enquanto era…”

Márcia, a jornalista, estagiária quando entrou na redação do Correio Nacional; hoje era editora chefe de Política Internacional no Jornal e isso se deu ao longo de uns quinze anos.

Estava na redação com seus colegas editores num típico dia nublado de Agosto e foi num insight reativo que decidira fazer aquilo…

Conversava com dois colegas de redação, quando do lado de fora, começou a chover densamente. Aquela cena compartilhada pelos olhos de Márcia, através da janela do terceiro andar daquele prédio já meio decadente de início do outro século, parece que criou na jornalista a alegoria mística de pessoas andando e se protegendo da chuva e do frio daquele dia de inverno, como se estivessem buscando a salvação do fim dos tempos numa dimensão apocalíptica com chuva de fogo, rancor e lágrimas. “Como será o armageddon?” – pensou.

Voltou ao mundo real e vendo aquelas pessoas lá embaixo lembrou-se da cena de um romance de Javier Marías, Os Enamoramentos, livro intenso e revelador do escritor espanhol, também sobre uma mulher trabalhando num lugar parecido com aquele, uma editora publicando escritores espanhóis.

Estava conversando com Mayara Zukov, editora de Artes do Correio, promissora garota na casa dos vinte e cinco anos com a beleza de vinte e cinco anos. Viera de fora da cidade com um amigo que também estava ali falando sobre Aldous Huxley e literatura política pós-contemporânea, portas da percepção sensorial, questões filosóficas e sobre sociedade. Juarez Salvador, o rapaz em questão, devia ter uns trinta anos. Inteligente, esperto, interessado nas coisas do mundo, dono de uma sabedoria menos acadêmica e mais secular, das ruas, de suas experiências com o “texto”, com as sensações da palavra, dos novos escritores e de novas descobertas. Dividia os textos sobre arte e cultura com Mayara. Márcia adorava os dois.

“Será que esses dois lá do Planalto onde nasceram imaginam como gosto deles?”

No auge de seus trinta e oito anos, sabia que eram seus amigos, os respeitava e quando tivesse acabado tudo aquilo, sabia que podia confiar naquelas pessoas.

– Mayara, Juarez, preciso que tomem conta do fechamento daquela matéria sobre o incidente no centro cultural De France, porque preciso sair agora e resolver uma questão pessoal.

– Podem fazer esse favor, meus caros amigos literatos?

– Claro que podemos, lady – respondeu Juarez.

– Podemos resolver essa matéria do France, e olhou de um modo estranho e preocupado para Mayara. Um olhar de soslaio, enviesado e Márcia percebeu que poderiam sentir que alguma coisa ali estava errada.

– Precisa ir agora, Márcia? – Está chovendo como em Bankok!

“Mas Bankok é quente” – pensou a editora.

Sabia que Mayara conhecia a Califórnia. Mostrou fotos da terra do cinema e dos Canyons do oeste ao lado de Fábio, seu namorado à época. “Estão casados hoje.”

“E Fábio era mestiço japonês, filho de Okinawa, não era tailandês!”

“Bom, de qualquer forma, talvez, May conheça Bankok pela curiosidade mórbida que a cidade desperta.”

“Cidade exótica, caótica.”

“Úmida e deformada.”

Freak city!”

“O Cult tem uma canção que fala sobre Bankok.” – “Em que álbum está?”

– Preciso, May. – Preciso resolver isso agora. – Não sei se consigo voltar hoje.

– Tudo bem, querida, disse Mayara. – Juarez e eu terminamos o fechamento da matéria e esperamos você amanhã. – Vai ficar bem, Márcia? – Precisa de alguma outra coisa? – Parece preocupada e isso me preocupa.

Don’t worry! – respondeu Márcia Coelho, editora chefe de Política Internacional do Correio Nacional.

– Só preciso sair agora, May. – Me liguem se precisarem de alguma coisa ou tiverem dúvidas – disse a editora, que pegou o guarda chuva escuro atrás da porta de sua sala e sem olhar para trás como fizera a mulher de Ló, desceu o elevador até a entrada e saiu do prédio do Jornal.

Subindo ao seu apartamento no terceiro andar, foi direto para seu quarto, abriu a gaveta do armário branco no canto esquerdo da parede e pegou aquele envelope azul com o resultado dos exames. “Me sinto como se estivesse no Processo de Kafka, acusada por algo que não conheço e não controlo.”

“Quanto tempo ainda há?”

“O que vou fazer até lá?”

“Mayara cuidará do caso do France e depois…”

Nesse momento o coração da editora acelerou batidas descompassadas e estranhas memórias de uma vida inteira surgiram como surgem os fantasmas que voltam de um outro tempo para nos lembrar do que vivemos e do que deveríamos ter feito no lugar da culpa e das paixões. Pensou na filha longe com o pai e a avó e nas escolhas que teve que fazer. Pensou na relação difícil com os pais, no casamento frustrado, no fim de seu último relacionamento com Jorge, pensou em Virginia Woolf, em Borges, em Balzac e seu sujeito problemático. Tudo parecia um transe e sentiu vertigem.

“Não vou sair de casa hoje, nem atender o telefone se não forem os dois do Correio, nem pensar no Jornal.”

“Vou ouvir aquele álbum do Human League, o segundo;  Travelogue.”

 “A Liga original, acho que de 78 ou 79.” – “Era mais experimental, mais avant-garde.”

“Quero ouvir Life Kills!”

 

“Your life is like a schedule
You run to meet the bills
No one’s awake to tell you
Life kills
Your life is like a schedule
You run to meet the bills
No one’s awake to tell you
Life kills”

 

E a editora colocou a terceira faixa de Travelogue, cantou o refrão, desejou o passado, queria que Jorge estivesse ali se divertindo com ela. A filha Estela. Jorge era psicólogo, buscava as experiências nos intrincados estudos cognitivos. “Por que não demos certo?”

Se mortificou um tempo com isso. Depois veio a faixa onze, “Marianne” e parou de pensar em Jorge, em Kafka e nas críticas da direita a Chico Buarque.

“Não vou voltar para o Jornal.”

“Mayara vai escrever sobre Política Internacional e Juarez sobre os eventos culturais.”

“Não.”

“Juarez é mais ligado às distopias e às vanguardas de esquerda da Europa dos anos cinquenta.”

“May é mais diletante, é mais artista, pensa como um poeta.”

“Vou propor o contrário, então; e depois decide-se quem será editor chefe.”

E não voltou ao Correio Nacional naquele dia, nem nos outros. Procurou Jorge, falou do tempo que ainda havia. Tiveram um outro entendimento a partir daí. Resolveu suas pendências rescisórias com o Jornal por e-mail. Só voltou lá uma vez, um mês depois e assinou tudo o que precisou assinar. Respondeu todas as mensagens. A redação, Mayara, Juarez, Filipe, Gabriel, Igor, Ivan, Karina Zafón, a destemida. Todos os redatores, editores, repórteres e até o pessoal do “Recursos Humanos”. Todos vieram ao apartamento de Márcia no terceiro andar da Rua Voltaire, número 79. E fora nos dias seguintes ao primeiro e-mail.

O sentimento geral, evidente, que era de surpresa, choque, pesar e dúvidas, mas, sobretudo com Jorge e com Estela, que veio de longe para passar aqueles dias com a mãe, houve alegria quase circense. Divertiram-se como nunca haviam feito juntos, nem antes. Curtiram sons, sensações, jogos, boa comida, bebida e formaram a família que a editora tanto desejou. Não se arrependeu de mais nada depois desses dias e concluiu que estava completa e realizada com todos os trabalhos profissionais que realizou, as matérias que cobriu, os cientistas políticos que entrevistou e tudo o que havia escrito em suas colunas no Jornal e no seu blog sobre filosofia e literatura. E ainda viveu esses dias com quem amava discutir Wim Wenders, o “inferno” de James Joyce e o futuro renovado da esquerda na América Latina.

Isso foi há dois anos.

Minha mãe, a editora, agora vive uma outra vida, num outro lugar mais diáfano, onde minhas memórias e meu orgulho ainda a alcançam…

 

 

 

Marcos Duarte

 

 

 

 

 

 

Mini Conto – “Dúvidas!”

Estavam todos lá, ele, os irmãos, a esposa, “ aquelas pessoas”, a família; todos afinal, estavam lá.

Era o aniversário de vinte e oito anos e tudo parecia resolvido em sua cabeça pendente para o lado, disforme na postura e aguardando o “insight”, evento que seria fatal e que experimentaria.

Dosou o sorriso e parecera a todos que estava bem e feliz, se é que alguém poderia sentir assim, o “é feliz”, enfim, Hemingway e aquela manhã! Ou será que a morte e aquele fuzil de caça se encontraram à tarde?

A esposa, mulher viva e altiva, pele fresca e olhar terno parecia amá-lo, aparentemente para eles, o amava ternamente, e o esperou que chegasse do trabalho naquele Sábado à tarde para fazer a surpresa.

“Vinte e oito anos! E nem esperava todos eles, nem essa alegria que me estava escondida.”

“Quem diria! Aqueles filósofos alemães, Adorno, Benjamin, Habermas, os de Frankfurt! Não deviam ter comemorado seus aniversários assim. Muito menos com uma mulher linda e especial como esta! Carpe Diem!”

Comemorou sim o aniversário, a surpresa da esposa e depois de dois dias, tomou dois tiros e voltou àquela cena de dois dias antes. Desejou a mesma vida que tivera, os mesmos sonhos, o mesmo desejo.

Veio, enfim, a inconsciência.

Mas acreditou que tudo sem dúvida valera a pena.

 

– Marcos Duarte

Conto – “Um Casal e Suas Dúvidas”

Foi pensando naquilo que pegou o livro e saiu de casa.

Borges tinha dito que tinha orgulho dos livros que leu, aquele orgulho da descoberta e do encantamento pelas perguntas da vida, e sabia que sentia isso por aquele Travessuras da Menina Má que estava tentando decifrar.

A menininha do outro lado da rua atravessou de repente e sua mãe aflita, tentou segui-la na mesma direção, meio desorientada. – “A infância e os dias, como são imprevisíveis e seus gestos algo entre displicentes e diáfanos, dizem que quando bebês, falam com os anjos, os sulistas americanos da literatura de plantações de algodão como Faulkner, talvez dissessem isso.”

“Os fluxos de consciência, como faziam aquilo? Borges deve tê-los lidos todos.” – O cabelo da menininha era castanho, comprido e ondulado, parecia infância e estava com pressa para viver, por isso atravessou a rua com o farol vermelho.

Ainda estava com os pensamentos daquela última noite, não sabia mais como pensava aquilo, como compreender aquelas questões que tanto o perturbavam e o fez, tão cedo, e num dia de folga, sair de casa naquele rompante? E ainda havia o livro.

“Devia ter dito tudo o que pensava, quem ela pensava que era?”

Desceu a escada do metrô enquanto pensava em Mrs Dalloway saindo de casa para comprar flores. – “Será que tinha dormido à noite?” – A menina assustou a mãe, ou era avó? Olhou ao redor, catraca, bilheteria, os passantes com seus mistérios sofridos. – “O que olhava o garoto de jaqueta de couro e com cólera? Parecia perturbado, olhava para mim e para as pessoas com raiva. Será que está chapado? – Clarissa Dalloway teria gostado da menina do farol!”

“Vou passar sem encarar esse garoto”. A fúria de Thiago estava engasgada, atravessada por aquela conversa sem sentido. Desceu mais dois lances de escada. Na plataforma, olhou para trás e não viu jaqueta nem couro nem cólera. O garoto nem estava mais ali.

“Ricardito desejava Lily naquele romance sobre Paris, cavalos, quadros e bistrôs, vou ler de novo, que página era em que ele fala do bistrô?” – Muitas luzes, o som daquele trem sob os trilhos. – “São elétricos? – Passa eletricidade aí? – Ricardo a quer, ela não cede. Vai buscá-la no inferno se precisar.”

Desceu do trem e apressou o passo. Pensava no que fazer. – “Que estação é essa? Bom, não faz diferença, vou sacar o dinheiro e depois vou morrer um pouco. – Não precisa ser de uma vez.” – Parece que sabia que ia morrer um pouco. A autora de Mrs Dalloway também sempre morria um pouco, depois morreu muito e aí acabou. Ele saiu da estação.

“Me disse que a vida não era complexa como acreditava, que era simples sombra, tendência de existir. O que é isso? Darwin? Jung? – Não somos só uma tendência.” – A discussão foi violenta, abriu feridas, rancores, serviu para colocar em xeque o que construíram antes. Por isso nem sabia o que viria depois.

Tirou o dinheiro naquele caixa no final da rua. Havia prédios antigos. – “Devem ser tombados, de que época serão? – Devem ser do início do outro século. – Já são duas da tarde, quase isso.” – “Vargas Llosa, acho que na página 132, sim é aqui, falou da vontade de Ricardo de ficar com Lily. Ele sempre fala sobre isso, o desejo dele, só fala desse maldito desejo!” – “Vou comprar qualquer bebida, desde que seja alcoólica!” – “Daí, já sei como vai ser, vou pensar em Darwin, na tendência, naquela maldita conversa que quis ter. Ela quis essa conversa. Está em casa hoje? Quando voltar, vou encará-la, não vai ficar assim aquela história de vida de espécie, de evolução, de sentido nenhum.”

Chegou ao bar que lembrou que conhecia. Comprou a bebida, duas. Misturou Smirnoff Ice com vodca barata, seca, incolor. Desejou voltar e experimentar o desejo por ela com aquela sua indignação, resultado de ela ter jogado na cara dele que essa vida era estúpida mesmo, que era só isso, estúpida, insípida e estéril.

“A menininha do farol que Faulkner acreditaria ter falado com anjos, não entenderia isso, não entenderia assim, bom talvez fosse só uma criança tola, como todas as crianças são um pouco tolas.”

Misturou a bebida, sentado no banco do bar. Pagou e saiu dali. Andou sem destino, vento na cara até chegar àquela praça do outro lado da cidade, do outro lado de onde ela estava. – “As pessoas também se achavam estéreis como ela? – passavam de um lado para o outro, urgentes em seu modo estranho de viver, de morrer um pouco, a tendência de Darwin, pareciam quase felizes.” – “Estou quase feliz!” – A bebida já fazia um pouco o seu efeito e ele sentia o dia passar quente e febril, mistura das lembranças do corpo dela com a indignação de quem quer tirar uma história perdida a limpo.

De repente, ouviu o som de uma sirene estridente e sombria, que parecia estar vindo dali de perto, talvez do próprio quarteirão da praça onde estava sentado. As pessoas, as mesmas de antes, se juntaram ao redor de um evento. Devia ser um evento. Ficou curioso, empurrou aquela gente toda, queria ver o que acontecia. O livro na mão. Não lembrava mais a página onde tinha parado.

Quando chegou mais perto, aquela muvuca de gente e suas vidas. Ficou irritado com tanta vida ao redor. Chegou ao centro da roda e ouviu um gemido baixo. Um gemido entre muitos outros gemidos de gente, agora era um gemido maior! – Entre todos os estranhos que estavam ali espreitando, deitado no chão, viu o que parecia uma jaqueta de couro! – “Não é possível! Era aquele rosto com cólera caído no chão, sangrando.” Branco, pálido, morrendo muito. Não havia sinal de morte, mas estava morrendo. Havia muito sangue para uma cólera só. “O que fazia ali?” – Os paramédicos chegaram rápido, falavam em infarto, miocárdio. – “Infarto? Miocárdio? Mas tem sangue!”- “Como alguém com cólera tem um infarto e sangra?”

“Que episódio bizarro é esse? E essa estranha coincidência, o garoto do metrô, muito jovem, cara de menino, sei lá, uns 30 anos, acho que menos.”

Saíram rápido, tentavam manter a tendência da sua vida existindo. – “Podem tê-lo salvo. Será que salvaram? Não sei. Nunca vou saber. Nunca vou saber o que Borges, escrevendo seus contos de labirintos realmente conseguia ver.”

Atravessou a enorme praça que parecia um parque para chegar de novo ao metrô. Nem viu mais nada nesse caminho áspero e sufocante das dúvidas que pairavam em sua mente confusa, alarmada pela visão de cólera e desespero, de incerteza e medo das vidas daquelas gentes temendo não a morte do rapaz de jaqueta, mas de suas próprias.

Chegou em casa. Ela o esperava. Estava abatida, tinha chorado muito. Chorou de novo ao vê-lo. Ela também tinha dúvidas. Ficou refletindo sobre a discussão que tiveram. Também não foi trabalhar naquele dia, ele disse sim, coisas que a feriram. Só ele não percebeu isso, estava indignado demais para entender como podia ser cruel quando queria. Ela também pensou que ele não tinha o direito de dizer para ela as coisas que disse. Ele achava que devia ter dito mais. Se tivesse dito, ela nem sabe o que teria feito ao longo do dia. Talvez saísse e não quisesse voltar mais. Mas agora havia aquele olhar entre os dois de quem não precisa dizer o que sente, de quem não precisa dizer mais nada nem divagar sobre Platão ou Spinoza.

Se abraçaram sem palavras, se amavam assim, se amaram nesse gesto cúmplice e solitário. “Pode haver sim mais coisas entre o céu e a Terra”, ela pensou. Mas sabe que tem o direito de pensar que não há. Ele agora também sabe. O sangue da jaqueta do infarto o fez entender.

Não vão discutir Darwin nem vida nem morte nem coisa alguma. Ficarão ali, abraçados em silêncio, sentindo um, o calor do outro. A vida recomeça assim, a tendência, os tormentos, a dúvida, os prazeres, o calor do corpo. Diferente do romance que lê, ela não morre no final. Nem ele. Mas ainda não sabe o depois. Isso importa?

 

– Marcos Duarte