Paulo Mendes de Almeida, um dos primeiros diretores artísticos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, signatário, segundo ele próprio, de todos os impulsos artísticos que eclodiram em eventos que criariam as bases ideológicas para a formação de grupos como a “Spam” ( Sociedade pró-arte moderna ) criada por Lasar Segall, e o “Cam” ( Clube dos artistas modernos ) idealizados por intelectuais politicamente engajados em causas sociais como Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade e Caio Prado, reunidos em “célebres tardes de chá”, no último andar do Mappin Praça Ramos, os salões de arte como o de Olivia Guedes Penteado ou o de Quirino da Silva, além da própria “Semana de Arte Moderna de 22”, disse em seu pequeno, mas fundamental documento de época, o livro De Anita ao Museu, que o movimento modernista no Brasil se iniciou mesmo com a “Exposição Insurrecional” de Anita Malfatti em 1917.
Foi com a exposição da pintora, que voltara da Alemanha e havia trazido de lá as bases expressionistas refletidas em suas obras como o Homem Amarelo e a Estudante Russa, que iniciou-se verdadeiramente no Brasil, especialmente em São Paulo, os princípios de revolução artística, não só na perspectiva das artes plásticas com a própria Anita, Tarsila do Amaral e Lasar Segall, mas toda a fomentação para uma agitação cultural da época, embebida nas desconstruções das vanguardas europeias e num audacioso projeto cultural de busca pela essência do caráter do brasileiro e da identidade nacional.
Anita, que se tornaria uma das figuras centrais para a idealização da semana de 22, foi duramente criticada pelo seu “expressionismo alemão” principalmente por um artigo escrito à época por Monteiro Lobato no jornal O Estado de São Paulo. A crítica foi demolidora sob o título de “A Propósito da Exposição Malfatti” e o dilema: “Paranóia ou Mistificação?” e o jornalista a destruiu artisticamente dizendo, entre outras coisas, que sua obra não tinha nada de original, não tinha essência, não tinha identidade brasileira e no fundo era apenas uma imitação mal feita do expressionismo que havia estudado na Alemanha e nos Estados Unidos.
Anita nunca se recuperaria dessa crítica do “Lobato” como o criador do Sítio do Pica Pau Amarelo era chamado pelos contemporâneos de Paulo Mendes de Almeida, mas sua obra mudou radicalmente ao longo de todo o modernismo, ganhando um ethos mais brasileiro a partir de pesquisas estéticas de busca pelo caráter nacional, buscando como Tarsila, Oswald, Paulo Prado e intelectuais engajados que viriam depois a partir de 1930, como Caio Prado, Sérgio Buarque e Gilberto Freire, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização da consciência criadora nacional.
Mário de Andrade, a quem Anita amou a vida inteira, e sabe-se que apesar do carinho e respeito que o antigo amigo de Oswald sempre tivera por ela, nunca retribuiu completamente esse amor, é sem dúvida a figura mais importante desse primeiro modernismo heróico da geração de 1920.
Foi ele a figura catalisadora do movimento de desconstrução, de desrealização, de desacralização desse primeiro modernismo ideológico, buscando, sob a influência das vanguardas europeias como o “Futurismo” e o “Dadaísmo”, a essência do povo brasileiro e da identidade nacional, tentando decifrar o dilema dos seus contemporâneos e que os atormentava, afinal: “quem éramos nós?”
O desafio estava posto. Como romper com a tradição e buscar o nacional?
Peter Burger em seu ensaio Teoria da Vanguarda afirma que a arte burguesa não é práxis, não está colada à vida, ela existe por si só para não ter função específica. Esse, então, seria o estatuto da arte, a autonomia, a função de não ter função; mas, um dos objetivos das vanguardas era exatamente a tentativa de destruir esse estatuto, a “autonomia.”
Como então buscar o nacional, as nossas raízes, a identidade de brasileiros, destruindo o estatuto da autonomia do meio pelo qual essas pesquisas estéticas seriam possíveis?
E como romper, destruir a tradição para buscar o caráter de construção da identidade nacional?
Essa foi a dialética de toda a primeira geração de 20, o confronto entre o cosmopolitismo em voga na Europa com o conceito da Belle Époque, ou seja, os deslumbres pelo crescimento urbano, cosmopolita, intelectual e cultural das grandes cidades, o que traria a idéia de desenvolvimento industrial e econômico para um país pobre e atrasado como o Brasil, e o primitivismo, a idéia de buscar a essência do caráter do país pelas pesquisas do mito, do folclore e da cultura popular, daí a obsessão de Mário que será desencadeada em Macunaíma e nos ensaios de Oswald de Andrade, este último, sem buscar necessariamente o popular, mas influenciado pela idéia do canibalismo dadaísta em O Manifesto Pau-Brasil e O Manifesto Antropófago, buscou defender a ideia do primitivo, do que será mastigado, degustado, experimentado, digerido e depois transformado para ser então, reabsorvido.
Macunaíma, o romance, Mário o escreveu deitado numa rede na chácara de um tio em Araraquara, interior de São Paulo, em apenas seis dias. Desta vez, afirmo que sou eu o signatário do orgulho que a cidade sente disso quando morei lá, durante o ano de 2007, a mesma cidade de Ignácio de Loyola Brandão, escritor de romances e contos, que conheci pessoalmente numa livraria da cidade e que também tem muito orgulho disso.
Sobre a rapsódia, ou seja, o próprio Macunaíma, Mário disse uma vez: “é afinal, uma antologia de todo o folclore brasileiro” e as palavras de Oswald parecem ratificar isso: “Mário escreveu nossa Odisséia e criou duma tacapada o herói cíclico e por cinqüenta anos o idioma poético nacional”. E pensar que depois os dois amigos ficariam anos de suas vidas sem trocarem uma só palavra após uma briga que envolveu um comentário maldoso de Oswald sobre uma possível homossexualidade de Mário de Andrade. Mário morreu em 1945, sem se reconciliar com o autor de Memórias Sentimentais de João Miramar.
Macunaíma narra a busca do herói sem nenhum caráter pela “Muiraquitã”, uma espécie de pedra-talismã mágica dada a ele inicialmente por Ci, a mãe do Mato, antes de deixar este mundo, subir ao céu e se transformar numa estrela. A pedra, perdida depois da luta com o monstro Capei, parece ter sido engolida por uma tartaruga que fora capturada por um rico fazendeiro de São Paulo chamado Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, comedor de gente. Macunaíma fica sabendo disso pelo pássaro uirapuru, e vai novamente à procura dela.
Em semiótica, seria o sujeito com um plano de ação em busca de um objeto de desejo.
O texto não é linear, o espaço é todo “desgeograficado”, o tempo é fragmentado. Tudo é mítico, indeterminado, o personagem é sobrenatural, meio humano, meio mito; os núcleos narrativos refletem a exata questão que perturbou essa geração, a dialética do mito brasileiro puro do primitivismo proposto desde o início como experimentação estética em busca da identidade nacional versus o desejo de destruir a tradição, buscando no cosmopolitismo a absorção das ideias de modernização das vanguardas europeias, principalmente do Futurismo, numa espécie de articulação entre cultura popular e cultura erudita.
Alfredo Bosi chama o primitivismo de Mário de “primitivismo culto”, já que é através da erudição culta de Mário que Macunaíma reflete a procura pela cultura popular do mito. Aliás, em seu ensaio crítico sobre Macunaíma, Bosi define a progressão linear do livro como um canto em decrescendo, já que o livro começa eufórico e otimista como um canto de louvor e termina como uma elegia melancólica, triste e pessimista, se bem que há canções elegíacas maravilhosas, diáfanas e sublimes, como a “Elegia” canção da banda inglesa New Order em seu álbum Low Life.
Bosi também afirma que há uma dialética clara em Macunaíma: a “esfera lúdica” e a “esfera do pensamento crítico”, uma voltada para o caráter da dimensão do mito e de contar a “estória” do país (a lúdica) e a outra na centralização da razão e do trabalho interpretando a “história” do país (a do pensamento crítico). Em outras palavras, o mito em Macunaíma não é puro, ele é contado pela perspectiva racional crítica, numa dimensão erudita.
A razão e a erudição, portanto, só existem em função do mito, de novo a dialética que remonta ao dilema inicial da geração de Mário, o Primitivismo versus o Cosmopolitismo. Dialética que, de qualquer forma, não teria fim para aqueles que estavam na exposição expressionista de Anita Malfatti em 1917. O herói mito que nasceu à margem do “Uraricoera”, na floresta Amazônica e que vem se deparar com a cultura cosmopolita de São Paulo, urbana e deslumbrante; a síntese do primeiro Modernismo.
Joan Dassin tem razão quando afirma que essas dialéticas ou oposições foram centrais na vida intelectual de Mário de Andrade, e estruturaram também o modernismo como um todo. Sua preocupação descrita de forma quase penosa no texto O Movimento Modernista, quando entre outras coisas afirma de forma claustrofóbica, que fez pouco e que tentando distorcer sua obra toda por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, acabou por consagrar uma obra que nada mais foi que um hiperindividualismo implacável, absenteísta e não engajada, também se justifica com a expressão de Dassin afirmando que o poeta, que se inspirou provavelmente em Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antonio de Almeida para escrever a saga do herói sem nenhum caráter, viveu mesmo a dicotomia entre o gosto aristocrático e a paixão pelo povo.
Isso fica claro quando Paulo Mendes de Almeida afirma em seu livro De Anita ao Museu, que apesar do termo “O Grupo do Santa Helena” ter sido cunhado por Sérgio Milliet para designar um grupo de jovens pintores italianos e filhos de italianos, todos operários e proletários que viviam num prédio antigo no centro velho de São Paulo, exatamente onde hoje se encontra a estação Sé do metrô, gente, por exemplo, como Alfredo Volpi, Francisco Rebolo e Mário Zanini, foi Mário de Andrade quem usou o termo de forma mais carinhosa, justificando que via nesses jovens artistas de classes menos favorecidas, a verdadeira autenticidade artística e uma forma justa de através da arte e do ofício da arte, a possibilidade de ascensão social.
Em síntese, Macunaíma é indispensável para se entender o Brasil do início do século XX e as preocupações que levaram intelectuais como Mário de Andrade a estudarem nossas origens e nosso caráter como resultado de nossa raça miscigenada e de nossos “mitos”.
– Marcos Duarte