Mário de Andrade e o “Macunaíma”, que somos nós!

Macunaíma Dois

 

Paulo Mendes de Almeida, um dos primeiros diretores artísticos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, signatário, segundo ele próprio, de todos os impulsos artísticos que eclodiram em eventos que criariam as bases ideológicas para a formação de grupos como a “Spam” ( Sociedade pró-arte moderna ) criada por Lasar Segall, e o “Cam” ( Clube dos artistas modernos ) idealizados por intelectuais politicamente engajados em causas sociais como Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade e Caio Prado, reunidos em “célebres tardes de chá”, no último andar do Mappin Praça Ramos, os salões de arte como o de Olivia Guedes Penteado ou o de Quirino da Silva, além da própria “Semana de Arte Moderna de 22”, disse em seu pequeno, mas fundamental documento de época, o livro De Anita ao Museu, que o movimento modernista no Brasil se iniciou mesmo com a Exposição Insurrecional” de Anita Malfatti em 1917.

Foi com a exposição da pintora, que voltara da Alemanha e havia trazido de lá as bases expressionistas refletidas em suas obras como o Homem Amarelo e a Estudante Russa, que iniciou-se verdadeiramente no Brasil, especialmente em São Paulo, os princípios de revolução artística, não só na perspectiva das artes plásticas com a própria Anita, Tarsila do Amaral e Lasar Segall, mas toda a fomentação para uma agitação cultural da época, embebida nas desconstruções das vanguardas europeias e num audacioso projeto cultural de busca pela essência do caráter do brasileiro e da identidade nacional.

Anita, que se tornaria uma das figuras centrais para a idealização da semana de 22, foi duramente criticada pelo seu “expressionismo alemão” principalmente por um artigo escrito à época por Monteiro Lobato no jornal O Estado de São Paulo. A crítica foi demolidora sob o título de “A Propósito da Exposição Malfatti” e o dilema: “Paranóia ou Mistificação?” e o jornalista a destruiu artisticamente dizendo, entre outras coisas, que sua obra não tinha nada de original, não tinha essência, não tinha identidade brasileira e no fundo era apenas uma imitação mal feita do expressionismo que havia estudado na Alemanha e nos Estados Unidos.

Anita nunca se recuperaria dessa crítica do “Lobato” como o criador do Sítio do Pica Pau Amarelo era chamado pelos contemporâneos de Paulo Mendes de Almeida, mas sua obra mudou radicalmente ao longo de todo o modernismo, ganhando um ethos mais brasileiro a partir de pesquisas estéticas de busca pelo caráter nacional, buscando como Tarsila, Oswald, Paulo Prado e intelectuais engajados que viriam depois a partir de 1930, como Caio Prado, Sérgio Buarque e Gilberto Freire, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização da consciência criadora nacional.

Mário de Andrade, a quem Anita amou a vida inteira, e sabe-se que apesar do carinho e respeito que o antigo amigo de Oswald sempre tivera por ela, nunca retribuiu completamente esse amor, é sem dúvida a figura mais importante desse primeiro modernismo heróico da geração de 1920.

Foi ele a figura catalisadora do movimento de desconstrução, de desrealização, de desacralização desse primeiro modernismo ideológico, buscando, sob a influência das vanguardas europeias como o “Futurismo” e o “Dadaísmo”, a essência do povo brasileiro e da identidade nacional, tentando decifrar o dilema dos seus contemporâneos e que os atormentava, afinal: “quem éramos nós?”

O desafio estava posto. Como romper com a tradição e buscar o nacional?

Peter Burger em seu ensaio Teoria da Vanguarda afirma que a arte burguesa não é práxis, não está colada à vida, ela existe por si só para não ter função específica. Esse, então, seria o estatuto da arte, a autonomia, a função de não ter função; mas, um dos objetivos das vanguardas era exatamente a tentativa de destruir esse estatuto, a “autonomia.”

Como então buscar o nacional, as nossas raízes, a identidade de brasileiros, destruindo o estatuto da autonomia do meio pelo qual essas pesquisas estéticas seriam possíveis?

E como romper, destruir a tradição para buscar o caráter de construção da identidade nacional?

Essa foi a dialética de toda a primeira geração de 20, o confronto entre o cosmopolitismo em voga na Europa com o conceito da Belle Époque, ou seja, os deslumbres pelo crescimento urbano, cosmopolita, intelectual e cultural das grandes cidades, o que traria a idéia de desenvolvimento industrial e econômico para um país pobre e atrasado como o Brasil, e o primitivismo, a idéia de buscar a essência do caráter do país pelas pesquisas do mito, do folclore e da cultura popular, daí a obsessão de Mário que será desencadeada em Macunaíma e nos ensaios de Oswald de Andrade, este último, sem buscar necessariamente o popular, mas influenciado pela idéia do canibalismo dadaísta em O Manifesto Pau-Brasil e O Manifesto Antropófago, buscou defender a ideia do primitivo, do que será mastigado, degustado, experimentado, digerido e depois transformado para ser então, reabsorvido.

Macunaíma, o romance, Mário o escreveu deitado numa rede na chácara de um tio em Araraquara, interior de São Paulo, em apenas seis dias. Desta vez, afirmo que sou eu o signatário do orgulho que a cidade sente disso quando morei lá, durante o ano de 2007, a mesma cidade de Ignácio de Loyola Brandão, escritor de romances e contos, que conheci pessoalmente numa livraria da cidade e que também tem muito orgulho disso.

Sobre a rapsódia, ou seja, o próprio Macunaíma, Mário disse uma vez: “é afinal, uma antologia de todo o folclore brasileiro” e as palavras de Oswald parecem ratificar isso: “Mário escreveu nossa Odisséia e criou duma tacapada o herói cíclico e por cinqüenta anos o idioma poético nacional”. E pensar que depois os dois amigos ficariam anos de suas vidas sem trocarem uma só palavra após uma briga que envolveu um comentário maldoso de Oswald sobre uma possível homossexualidade de Mário de Andrade. Mário morreu em 1945, sem se reconciliar com o autor de Memórias Sentimentais de João Miramar.

Macunaíma narra a busca do herói sem nenhum caráter pela “Muiraquitã”, uma espécie de pedra-talismã mágica dada a ele inicialmente por Ci, a mãe do Mato, antes de deixar este mundo, subir ao céu e se transformar numa estrela. A pedra, perdida depois da luta com o monstro Capei, parece ter sido engolida por uma tartaruga que fora capturada por um rico fazendeiro de São Paulo chamado Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, comedor de gente. Macunaíma fica sabendo disso pelo pássaro uirapuru, e vai novamente à procura dela.

Em semiótica, seria o sujeito com um plano de ação em busca de um objeto de desejo.

O texto não é linear, o espaço é todo “desgeograficado”, o tempo é fragmentado. Tudo é mítico, indeterminado, o personagem é sobrenatural, meio humano, meio mito; os núcleos narrativos refletem a exata questão que perturbou essa geração, a dialética do mito brasileiro puro do primitivismo proposto desde o início como experimentação estética em busca da identidade nacional versus o desejo de destruir a tradição, buscando no cosmopolitismo a absorção das ideias de modernização das vanguardas europeias, principalmente do Futurismo, numa espécie de articulação entre cultura popular e cultura erudita.

Alfredo Bosi chama o primitivismo de Mário de “primitivismo culto”, já que é através da erudição culta de Mário que Macunaíma reflete a procura pela cultura popular do mito. Aliás, em seu ensaio crítico sobre Macunaíma, Bosi define a progressão linear do livro como um canto em decrescendo, já que o livro começa eufórico e otimista como um canto de louvor e termina como uma elegia melancólica, triste e pessimista, se bem que há canções elegíacas maravilhosas, diáfanas e sublimes, como a “Elegia” canção da banda inglesa New Order em seu álbum Low Life.

Bosi também afirma que há uma dialética clara em Macunaíma: a “esfera lúdica” e a “esfera do pensamento crítico”, uma voltada para o caráter da dimensão do mito e de contar a “estória” do país (a lúdica) e a outra na centralização da razão e do trabalho interpretando a “história” do país (a do pensamento crítico). Em outras palavras, o mito em Macunaíma não é puro, ele é contado pela perspectiva racional crítica, numa dimensão erudita.

A razão e a erudição, portanto, só existem em função do mito, de novo a dialética que remonta ao dilema inicial da geração de Mário, o Primitivismo versus o Cosmopolitismo. Dialética que, de qualquer forma, não teria fim para aqueles que estavam na exposição expressionista de Anita Malfatti em 1917. O herói mito que nasceu à margem do “Uraricoera”, na floresta Amazônica e que vem se deparar com a cultura cosmopolita de São Paulo, urbana e deslumbrante; a síntese do primeiro Modernismo.

Joan Dassin tem razão quando afirma que essas dialéticas ou oposições foram centrais na vida intelectual de Mário de Andrade, e estruturaram também o modernismo como um todo. Sua preocupação descrita de forma quase penosa no texto O Movimento Modernista, quando entre outras coisas afirma de forma claustrofóbica, que fez pouco e que tentando distorcer sua obra toda por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, acabou por consagrar uma obra que nada mais foi que um hiperindividualismo implacável, absenteísta e não engajada, também se justifica com a expressão de Dassin afirmando que o poeta, que se inspirou provavelmente em Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antonio de Almeida para escrever a saga do herói sem nenhum caráter, viveu mesmo a dicotomia entre o gosto aristocrático e a paixão pelo povo.

Isso fica claro quando Paulo Mendes de Almeida afirma em seu livro De Anita ao Museu, que apesar do termo “O Grupo do Santa Helena” ter sido cunhado por Sérgio Milliet para designar um grupo de jovens pintores italianos e filhos de italianos, todos operários e proletários que viviam num prédio antigo no centro velho de São Paulo, exatamente onde hoje se encontra a estação Sé do metrô, gente, por exemplo, como Alfredo Volpi, Francisco Rebolo e Mário Zanini, foi Mário de Andrade quem usou o termo de forma mais carinhosa, justificando que via nesses jovens artistas de classes menos favorecidas, a verdadeira autenticidade artística e uma forma justa de através da arte e do ofício da arte, a possibilidade de ascensão social.

Em síntese, Macunaíma é indispensável para se entender o Brasil do início do século XX e as preocupações que levaram intelectuais como Mário de Andrade a estudarem nossas origens e nosso caráter como resultado de nossa raça miscigenada e de nossos “mitos”.

 

– Marcos Duarte

Uma reflexão : A relação entre as vanguardas europeias e o modernismo no Brasil

Fiz um trabalho na universidade, uma vez, e a partir de aulas de literatura brasileira com uma daquelas professoras inesquecíveis, fiz uma reflexão maior para entender o quão influentes foram as vanguardas da arte na Europa sobre a literatura moderna brasileira e seus “iluministas” desbravadores do estudo de nossa essência mestiça e de nossos mitos.

Inspirado num programa de tv que discute a literatura, condensei aquele texto em alguns parágrafos, mais como reflexão, que como um estudo ambicioso e definitivo e os relacionei nessas observações que anotei ao longo daqueles dias de análise.

Como desconfiava, o Modernismo no Brasil, como viria a ser conhecido muito tempo depois da Semana de Arte Moderna de 22, já que os seus contemporâneos não viam naquela efervescência cultural e artística um movimento, e que tivesse um nome específico; teve principalmente três fases distintas, uma geração primitivista de vanguarda que fomentou a semana( os anos 20 ), a geração de 1930, com engajamento social e político, buscando a construção do outro diante da sociedade e fazendo uma denúncia social, e a geração posterior, a de 1945 em diante, curiosamente, o ano da morte de Mário de Andrade, o grande nome da primeira geração, um dos pontos catalisadores das gerações seguintes.

Mário e contemporâneos seus como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Paulo Prado, após viagens à Europa, principalmente à França, tiveram os primeiros contatos com as novas teorias de vanguarda e assim, experimentaram as sensações sensitivas do expressionismo alemão, especialmente Anita, e isso ficaria evidente na sua célebre exposição de 1917, em que apresentaria ao país essa influência estética em obras como o Homem Amarelo e a Estudante Russa, o cubismo de Pablo Picasso, os processos de desrealização, desacralização e irracionalismo criados pelo Dadaísmo de Marcel Duchamp e pelo Futurismo, além de todas as estruturas artísticas que inauguraram as tendências do cosmopolitismo e da busca pela modernidade e do inconsciente.

Mário de Andrade, então, decide fazer uma longa pesquisa sobre a cultura nacional e como a arte de vanguarda poderia refleti-la, sustentá-la e principalmente justificá-la.

Foi ele a figura central do movimento de desconstrução desse primeiro modernismo ideológico, buscando sob a influência dessas vanguardas europeias, principalmente do Futurismo e do Dadaísmo, a essência do povo brasileiro, a identidade nacional, a tentativa de decifrar o dilema de todos os seus contemporâneos, que de certa forma, os atormentava, afinal, quem éramos nós?

O desafio estava posto: Como romper com a tradição e buscar o nacional?

Peter Burger em seu livro de ensaios Teoria da Vanguarda afirma que a arte burguesa não é práxis, não está colada à vida, ela existe por si só para não ter função específica. Esse, então, seria o estatuto da arte, a autonomia, a função de não ter função.

Mas, um dos objetivos das vanguardas era exatamente a tentativa de destruir essa autonomia da arte de não ter função, e Mário sabia disso.

Como então buscar o nacional, as nossas raízes, a identidade de brasileiros, destruindo o estatuto do meio pelo qual essas pesquisas estéticas seriam possíveis?

E como romper, destruir a tradição para buscar o caráter de construção da identidade nacional?

Essa foi a dialética da primeira geração de 20, o confronto entre o cosmopolitismo em voga na Europa com o conceito da Belle Epoque, ou seja, os deslumbres pelo crescimento urbano, cosmopolita, intelectual e cultural das grandes cidades, o que traria a ideia de desenvolvimento industrial e econômico para um país pobre e atrasado como o Brasil, e o primitivismo, a ideia de buscar a essência do caráter do país pelas pesquisas do mito, do folclore e da cultura popular, daí a obsessão de Mário que será desencadeada em Macunaíma e nos ensaios de Oswald de Andrade, sem buscar necessariamente o popular, mas influenciado pela ideia do canibalismo dadaísta em O Manifesto Pau-Brasil e O Manifesto Antropófago defendendo a ideia do primitivo, do que será mastigado, degustado, experimentado, digerido e depois transformado para ser então, reabsorvido.

Depois veio o socialismo na geração de 30 e as experimentações da linguagem da geração seguinte em que Guimarães Rosa e Clarice Lispector exploraram o narrador onisciente e o fluxo de consciência como haviam feito Kafka, Beckett, Joyce, Faulkner e Virginia Woolf, de novo, com exceção de Faulkner que era americano, sob influência da arte escrita praticada na Europa dos anos 20, 30 e 40, do século XX.

A literatura brasileira continuou a se expandir sob outras influências ao longo do século, ganhou personalidade e características únicas, o Modernismo mudou a arte feita aqui e na Europa e a Semana de Arte Moderna de 22 fará cem anos daqui a três.

E continuaremos a refletir sobre tudo o que ela representou e representa.

Que venha 2022!

 

 

Marcos Duarte

Decadência tortuosa, digressão e fragilidade da memória em “Leite Derramado” de Chico Buarque

leite-derramado

 

 

 

A decadência em todas as suas formas e níveis sempre fora abordada na arte, principalmente, na literatura, desde o advento do romance moderno.

O romance do século XIX, Flaubert, Machado, Zola, Balzac, os russos, a geração de 1870 de Coimbra, Eça, as narrativas sobre a alta e baixa burguesia, já descreviam as sagas de família e sua decadência econômica, social e moral em vários níveis e os folhetins eram lançados, lidos e depois de uma sucessão de vários volumes eram editados como romances, geralmente longos e divididos em partes.

As impressões em jornal eram, realmente, a grande forma viável de expressar, através de novelas e narrativas de ficção, o comportamento social de um mundo novo aberto à nova dinâmica burguesa, ou mesmo a relação de conflito dos interesses públicos/privados de velhas e novas oligarquias coloniais em países como o Brasil ou mesmo a aristocracia conservadora e cristã de potencias europeias.

O modernismo do início do século XX representado em Proust, Kafka, Virginia Woolf, Beckett e depois em Clarice Lispector, García Márquez e Vargas Llosa fragmentou o discurso narrativo na experimentação da linguagem, mas continuou contando as histórias decadentes de famílias burguesas ou aristocráticas em enredos ainda cheios de peripécias cronológicas tornando o texto mais rebuscado, com monólogos interiores, fluxos de consciência, posições dispersas do narrador, mas agora, claro com exceções como a Recherche de Proust, mais concisos, com relatos mais curtos e com mais ritmo.

Num último corte sincrônico sobre a literatura ocidental, as narrativas contemporâneas da segunda metade do século XX e virando já para o XXI, trazem autores que conseguem conciliar gêneros diferentes, ritmos diferentes, recursos diferentes e ao descreverem um tema tradicional na literatura como as sagas de família, o fazem com complexidade suspensa e concisão quase cirúrgica, como faz Chico Buarque em Leite Derramado.

A narrativa se dá de forma intimista e singela e aos poucos vai se bifurcando em lembranças e memórias fora de lugar, surpreendendo ora pela precisão pontual de tempo e espaço, ora pela entropia e divagação singular do personagem narrador que parece às vezes um tanto confuso, perdido nas lembranças de seu relato secular.

Tudo começa aparentemente num quarto de hospital, aonde um homem aos poucos vai se revelando através de uma suposta conversa com uma de suas enfermeiras. O tom é confessional e de monólogo e passo a passo tenta construir uma relação de vínculo íntimo com a moça que o ouve enquanto lhe dá os remédios e o observa enquanto lhe presta cuidados médicos.

Esse personagem que também é o narrador diz à enfermeira no primeiro parágrafo do livro:

 

            “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família”.

 

O início um tanto melancólico e em monólogo insistente já dá o indício que o personagem protagonista entrará numa espiral lamuriosa de confissões que cedo ou tarde vão denunciar seu estado de decadência física, psíquica e financeira. Baudelaire, certa vez, disse em reconhecer a imagem do herói moderno em crítica que fazia à literatura em voga no seu tempo, a comparando com personagens da Roma clássica e concluindo que o herói moderno era maior que o antigo. Ele diz:

 

            “Não somos hoje maiores do que Brutus?”

 

Será que esse personagem de Leite Derramado, dito pelo próprio narrador como sendo Eulálio D’Assumpção, se encaixa nesse arquétipo do herói moderno descrito por Baudelaire? Ou tem características psicológicas do personagem problemático do romance do século XIX?

A narrativa vai fluindo à medida que o narrador/paciente vai confessando suas memórias, uma a uma, e o panorama de decadência inexorável vai se montando, quando entre outras coisas, entende-se que o personagem já é muito velho e secular, completando cem anos de idade. Depois de comemorar o seu aniversário com o tetraneto e sua namorada Kim, o personagem Eulálio é recolhido na rua por dois policiais que estranham o fato de ter saído sozinho à rua e o levam de volta a seu apartamento onde mora com a filha Maria Eulália.

Surpreende os dois agentes dizendo:

 

            “Cem anos, insisti, e esbanjando saúde, apesar do coração momentaneamente acelerado, e lhes falei do meu amor incestuoso por uma pequena nascida em 1989”.

 

O tom de decadência e de fragilidade de memória faz com que em alguns momentos do texto, o personagem narrador pareça realmente confuso com o que fala. As digressões passam a ser um dos recursos que Chico Buarque usa para salientar a confusão mental de Eulálio que já não lembra mais se determinado evento aconteceu antes ou depois de um outro já citado e os tempos passam a ser alternados de forma um pouco caótica, dentro do total domínio de Chico, de tentar reproduzir as falhas cronológicas das lembranças do paciente internado.

A insuficiência de uma vida plena, como em José Costa, também narrador personagem do livro Budapeste, também de Chico, e os relatos um tanto melancólicos de aventuras e experiências frustradas de uma vida conturbada, fazem com que hajam semelhanças e convergências entre os dois romances. O que parece diferenciá-los, contudo, e torná-los distintos cada um à sua maneira, é o foco de estudo psicológico que o autor faz de seus personagens centrais. Leite Derramado parece analisar a fragilidade da velhice, da finitude, da imprecisão da memória como em O Homem Comum de Philip Roth, ou A Morte de Iván Ilitch de Tolstói, enquanto Budapeste parece canalizar a narrativa para um estudo sobre a crise de identidade e seus desdobramentos sociais, mais ou menos como José Saramago faz no romance O Homem Duplicado.

De qualquer forma o que parece novamente fazer convergir os dois romances, além dos outros citados de Tolstói, Roth e Saramago é a densidade do texto, causando um tom de claustrofobia em algumas passagens, marcados por labirintos textuais em que cada capítulo começa e termina sem uma resolução para a problemática incitada pelas lembranças tortuosas de uma vida frustrada e se aproximando do fim.

José Miguel Wisnik ao analisar Budapeste afirma que entre a relação de identidade das duas cidades presentes no texto, cria-se uma “incógnita” que segundo ele, é o próprio narrador, e que a “incógnita” do narrador é a mulher.

Se a “incógnita” do narrador em Leite Derramado também é a mulher, essa mulher é Matilde. Matilde permeia o romance pelas lembranças de Eulálio D’Assumpção. Tudo parece remeter a ela, a vitalidade juvenil do narrador, suas motivações, desejos, fetiches, ambições, pensamentos e lembranças, tudo tem como cerne a figura de Matilde, a jovem e desejada mulher de Eulálio que se casara com o herói da narrativa no auge de sua vida próspera e de sua projeção social.

Matilde aparece na memória de Eulálio como a “moura encantada” de Gilberto Freire, aquela mulher mestiça que enfeitiçava o imaginário e os desejos sexuais dos homens brancos portugueses quando das invasões mouras na Península Ibérica, e que quando chegavam ao Brasil, se encantavam com as índias nativas de pele morena, semelhantes à lenda da moura mestiça que tomava banho, nua em cachoeiras, lavando seus cabelos escuros e compridos.

Matilde é descrita como um fetiche de Eulálio, mulher jovem, fogosa e desejosa. Em sua memória falha e confusa, o narrador descreve várias vezes e em passagens distintas do romance, a forma e o dia em que a conheceu.

 

            “Não sei se alguma vez lhe contei que já tinha visto Matilde de passagem, na porta da igreja da Candelária. Mas nunca a pude analisar como naquele dia, quando a surpreendi na pausa que antecedia o ofertório. Ela estava no coral que cantava o Réquiem, e o vestido de congregada mariana não lhe caía bem, era como uma roupa ao redor dela, solta da pele”.

 

O desejo pela mulher é realçado numa passagem próxima quando a compara com outras mulheres:

 

            “Debaixo do chuveiro eu agora me olhava quase com medo, imaginando em meu corpo toda a força e a insaciedade do meu pai. Olhando meu corpo, tive a sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele, por todas as fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher”.

 

A jovem mulher desejosa de Eulálio era cheia de vitalidade e desejo pelas boas coisas da vida e estar casada com uma pessoa de prestígio, filho de um senador da República, descendente de uma notável aristocracia portuguesa, em que antepassados andaram com Maria, a Louca, mulher do Imperador Dom João VI e com Dom Pedro II, era experimentar uma vida completamente nova e promissora com viagens a Paris, hospedagem em hotéis suntuosos, boa comida, bebida, pratarias, joias e muito conforto. Parecia uma troca, e a mulher esbanjava sensualidade e vigor dançando maxixes com os amigos do marido e o incitando a desejá-la cada vez mais.

 

Logo engravidou do narrador e deu à luz Maria Eulália, a filha que o acompanharia a vida inteira, tão frustrada quanto ele, já que depois de um tempo de nascida, no auge dos dezessete anos, sua mãe, inexplicavelmente segundo o narrador, desaparece misteriosamente sem deixar vestígios, depois de uma crise violenta de depressão, abandonando marido e filha e sem dar uma explicação. Desconfia-se, novamente segundo as lembranças vacilantes de Eulálio, que a morena possa ter fugido com Dubosc, engenheiro francês, amigo do narrador e que parece ter estreitado relações com a mulher fogosa, depois de ter dançado um maxixe com ela, o que enervou Eulálio, deixando-o com ciúme de Matilde e a rotulando de “vulgar” por não saber se comportar bem nas altas rodas, além da sua falta de cultura e conhecimento para acompanhar o ritmo intelectual das pessoas ligadas à vida da elite do Rio de Janeiro.

Sobre o dilema do desaparecimento de Matilde, Roberto Schwarz em crítica sobre Leite Derramado em sua coluna no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, lança mão de algumas perguntas que o leitor do livro também se fez em algum momento ao longo da narrativa:

 

            “O núcleo romanesco da intriga, o seu elemento de sensação, é o desaparecimento inexplicado de Matilde. Ela se foi com o engenheiro francês? Fugiu aos ciúmes do marido? Caiu na vida? Pegou uma doença e quis morrer fora da vista dos seus? Morreu num acidente de carro, acompanhada de um homem?”

 

Essa resposta, na verdade, não aparece claramente no romance. Entre as lembranças débeis e senis de Eulálio, a especulação por parte dos outros personagens da trama do que poderia ter acontecido, a sombra de uma mãe fantasma para Maria Eulália e os fatos mais concretos narrados ao longo do romance, parece que cabe ao leitor do livro, deduzir, elucubrar, conjecturar e concluir qual foi o destino traçado por Matilde, e que a levou a abandonar uma família recém formada, uma vida que a traria conforto material, a possibilidade real de viver como uma “madame” da alta sociedade carioca e usufruir de todas as prerrogativas burguesas e aristocráticas. Talvez tenha recaído sobre ela a síndrome de Emma Bovary, que nunca se bastou, nunca alcançou a satisfação pessoal ou social, talvez porque como Matilde, buscasse “o absoluto”.

Por fim, o ápice da decadência do herói senil de Chico Buarque fica marcado já no final do livro, no início do capítulo XXIII, quando de forma consciente e aparentemente, lúcida e resignada, Eulálio D’Assumpção sentencia seu destino já quase moribundo e joga a pá de cal sobre qualquer perspectiva para o futuro, concluindo aquele ciclo vicioso de sua vida longeva, onde o primeiro parágrafo do capítulo reflete e completa o parágrafo do primeiro, criando uma antítese como num labirinto estético de espirais que dão voltas em torno de si mesmas e não saem do lugar, numa letargia memorial. Fala para a enfermeira ou fala sozinho como se referisse a ela:

 

            “Quando saísse daqui, eu pretendia pedi-la em casamento, mas ela não me quer mais. Passa ao largo da minha maca, não atende às minhas súplicas, deve estar farta de me ouvir trocar seu nome. Talvez ela não creia que eu ainda volte para casa, ouço rumores de que estou na fila para uma vaga em hospital público”.

 

Divertido e denso, revelador e misterioso, crente e pagão, o romance onde congregam nele, outros romances, inclusive do próprio Chico.

 

 

 

Marcos Duarte

“Memórias de um Sargento de Milícias” de Manuel Antonio de Almeida – O documento histórico indispensável para se entender o caráter do brasileiro

Memórias

 

A grande obra literária tem que ter como base a vida. Partindo-se desse pressuposto,  a ironia, a paródia de tipos, a carnavalização, o pitoresco nas personagens de Manuel Antônio de Almeida e suas Memórias de um Sargento de Milícias, descreve com precisão documental a vida cotidiana e prosaica da sociedade brasileira à época da chegada da corte de Dom João VI com seus tipos e costumes cariocas cheios do que críticos de sua obra tão prematura chamavam de maledicência.

Mário de Almeida Lima afirma que a obra de Manuel Antônio não despertou grande interesse na sociedade da época porque o que estava em voga era o romantismo de conquistar os corações de leitoras e estudantes com os textos de Joaquim Manoel de Macedo,  cheios de intrigas em torno de namoricos de sinhazinhas casadoiras dos sobrados, de desníveis de situação econômica, de questões de herança e de família e que o inconveniente livro de Manuel Antônio cometera a imprudência de voltar-se para a gente anônima das ruas, das zonas pobres da cidade, para a patuleia, gente que sequer tinha nome completo; era a “comadre”, o “compadre”, a parteira, Luizinha, Leonardo Pataca, a Maria-da-Hortaliça, Vidinha, Maria Regalada, José Manoel, o mestre de rezas, sacristãos, padres de vida suspeita, malandros, tocadores de viola, a maior parte vivendo não se sabe do que, de biscates, de arranjos, das sobras das mesas bem providas.

O deslocamento contextual e as diferenças ideológicas com Macedo não param aí. Para Alfredo Bosi, as Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, estão isentas de qualquer traço idealizante e procuram despregar-se da matéria romanceada graças ao método objetivo de composição, próximo do que seria uma crônica histórica cujo autor se divertisse em resenhar as andanças e os pecadilhos do cidadão comum.

Em Macedo, a veracidade dos costumes fluminenses aparece distorcida pela cumplicidade tácita com a leitora que quer ora rir, ora chorar, o que Afrânio Coutinho chama de ilogismo, uma das características do romantismo, ou seja, a atitude ilógica oscilando entre alegria e melancolia, entusiasmo e tristeza, de onde, ainda para Bosi, resulta um realismo de segunda  mão, não raro rasteiro e lamuriento. Em Manuel Antônio, o compromisso é mais alto e legítimo, porque se faz entre o relato de um momento histórico (o Rio sob D. João VI ) e uma visão desenganada da existência, a fonte do humor difuso no seu único romance.

Ainda no plano estético e das técnicas de composição, Bosi novamente apresenta diferenças fundamentais entre o documento histórico de Manuel Antônio e os romances passionais de Joaquim Manoel de Macedo…

                                                Desde a primeira linha, o leitor sente o interesse  em tudo datar e localizar com precisão:

                                               “Era no tempo do rei”

                                               “Uma das quatro esquinas que formam as Ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se naquele tempo “ O canto dos meirinhos.”

 

” Que diferença do vezo de Macedo, tomado aos folhetins de Paris, de deixar em suspenso as coordenadas da ação, valendo-se de misteriosos asteriscos de reticências: “Na cidade de***, ou “Nos idos de abril de 18…”

 

O romance de costumes com alto viés crítico de Manuel Antônio que remonta às tradições orais do povo mais pobre e menos abastado também difere bastante da busca pelo exagero, típico recurso muito explorado pelos autores românticos à época dos folhetins publicados pelo Correio Mercantil, como o próprio Memórias de um Sargento de Milícias, isso nos idos de 1850. Ele não explora à exaustão, o que Afrânio Coutinho chama de um mundo de perfeição e  sonho romântico ou o que pode reformar esse mundo. Tudo é mais irônico e reflete sempre a dinâmica social da vida das ruas, as figuras comuns e populares. Procurou não mostrar o que poderia ser bom, bravo, belo, amoroso, puro e sim mostrar  o povo como o povo era e continuava ser.

O que o romance não parece diferir da produção cultural e literária da época, ou seja, do período que se estende da tríplice regência até o segundo reinado, mais ou menos entre 1830 e 1860, da qual faz parte a geração de Manuel Antônio, é a tentativa e busca de intelectuais e artistas pela identidade nacional do caráter do brasileiro e um projeto nacional para as artes, a literatura e o pensamento brasileiro.

Segundo Karl Mannheim, o romantismo expressava os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza que já caiu na Europa, e depois dos motes de liberdade, igualdade e fraternidade pós revolução francesa em 1789, também a pequena burguesia que ainda não subiu, as atitudes saudosistas e reivindicatórias que pontuavam todo o movimento de Rousseau até Balzac, passando por Baudelaire, Blake e chegando até nossos expoentes;  Gonçalves de Magalhães, José Alencar e os góticos da segunda geração, influenciados por Byron, Poe e Hoffman; Álvares de Azevedo, Junqueira Freire até chegar-se à passagem para o Realismo, já na segunda metade do século XIX e Memórias de um Sargento de Milícias compartilhava com todos esses contemporâneos no Brasil, a voz dos descontentes e desiludidos, mas principalmente, o que pode-se elucubrar como a busca pelo projeto nacional.

Mas, mesmo fazendo parte dessa geração de autores que buscavam um projeto para a literatura brasileira, novamente tem-se que concluir que o livro documento de Manuel Antônio tem estruturas muito diferentes do romantismo brasileiro da época, por ter características satíricas na crítica que o autor faz da pequena burguesia carioca, e pitorescas com a presença de um verdadeiro anti-herói que vive sua vida suburbana nas ruas, pobre, malicioso, sem idealização; vivendo da oportunidade e da sorte. A obra não possui linearidade, o texto é meio recortado, com interrupções, comentários e explicações que quebram o enredo com o uso constante de metalinguagem, em que o autor parece falar com o leitor, antecipando uma técnica que mais tarde seria muito usada por Machado de Assis, já na maturidade.

Por sua narração onisciente e descrição recorrente na obra em que aparece como observador, se aproximando muito do realismo, especialmente Machado da trilogia realista, Memórias Póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro, Manuel Antônio de Almeida foi e é considerado por muitos críticos como um escritor de transição do romantismo para o realismo.

 

                               “A Sarabanda que o mestre de cerimônias passara as dois pequenos em razão do que haviam feito à pobre mulher não produziu, como dissemos, nenhum efeito sobre eles no sentido de os emendar(…).”

                               “Foi o caso assim: o mestre de cerimônias(…).”

 

 A organização do romance e sua progressão temática seguem dois núcleos centrais:

Parte A – Núcleo das aventuras de Leonardo Pataca ( o pai).

Parte B ­– Núcleo das aventuras de Leonardo Filho

 

Um aspecto que torna o romance bastante singular é realmente a presença do malandro anti-herói, os dois, tanto o pai no primeiro núcleo, preguiçoso e pachorrento, como o filho no segundo, esse sim; o pícaro da crítica de costumes, contrariando a subjetividade típica do romantismo vigente à época, como nos romances góticos e na inspiração indianista de Gonçalves Dias e José Alencar, a substituindo pela caricatura das personagens da classe baixa fluminense e sua realidade externa.  O humor representado no romance pela linguagem simples e direta substitui a idealização recorrente no universo romântico da época.

Toda essa realidade direta e livre parece percorrer um século e meio e chegar incrivelmente atual aos nossos dias, mostrando muito do caráter do brasileiro típico, meio preguiçoso, malemolente, mestiço, sensualista e que, no dia a dia das ruas, parece como as personagens de Memórias, um sobrevivente; ao Estado, às condições adversas, à pobreza, à falta de perspectiva na vida, mas ainda assim muito alegre, receptivo, vivo.

O personagem central do romance de Manuel Antônio, fugindo do major Vidigal, que era a lei, a justiça, o pesadelo que mantinha a ordem e o medo naquelas figuras submissas do Rio de Janeiro Joanino,  ao qual Mário de Almeida Lima, se refere como a fidalguia parasitária e vadia, trazendo da Europa as intrigas da corte, parece enfim, com típicos personagens urbanos da sociedade atual, alguns mascates e vendedores ambulantes fugindo às pressas e à “francesa” de “batidas” de polícia, por exemplo:

 

                               “Avistei o Vidigal,

                                Fiquei sem sangue;

                                Se não sou tão ligeiro,

                                O quati me lambe.”

 

Por fim, Afrânio Coutinho se refere às Memórias escritas em 1852, como despretensiosa, de imatura vocação de romancista, as Memórias constituem um acontecimento literário. Uma narrativa fácil, sem genealogia literária, mais um milagre de adivinhação do que criação consciente.

Finalmente, concluo esta breve e despretensiosa análise  da obra máxima de Manuel Antônio de Almeida reafirmando o que já fora dito por muitos críticos da obra e do movimento romântico brasileiro:

 

                “Memórias de um Sargento de Milícias é um documento histórico do Brasil da primeira metade do século XIX.”

 

 

– Marcos Duarte